Como avaliar e retomar a aprendizagem na volta às aulas?
O contexto pandêmico, iniciado em 2020, tornou imperativo que o processo de aprendizagem, em todos os níveis, modalidades e etapas de ensino, fosse modificado, reinventado e reconfigurado do ponto de vista do espaço-tempo, da abordagem teórico-metodológica, das estratégias de ensino.
Além disso, nas práticas avaliativas, nos modos de aprender e de ensinar, viabilizados, predominantemente, pelo ensino remoto, impactando, diretamente, sobre como esse professor, na sua ação docente, na qual se contempla não apenas as etapas de planejamento, mas também a efetiva prática nessa nova sala de aula, vai avaliar e retomar a aprendizagem nesse período de volta às aulas.
Nessa direção, algumas indagações, no entorno desse cenário educacional, possui consideração importante.
Marco legal
A primeira delas diz respeito às questões legais, deliberadas em nível nacional, negociadas sob tensões políticas, quanto à permanência do ensino remoto, que antes estava permitido até o final do ano de 2020, mas foi revogado a partir da homologação da Resolução CNE/CP no. 2, de 10 de dezembro de 2020.
Nessa resolução, instituíram-se Diretrizes Nacionais orientadoras para implementação dos dispositivos da Lei no. 14.040, de 18 de agosto de 2020.
Estabelece normas educacionais excepcionais a serem adotadas pelos sistemas de ensino, instituições e redes escolares, públicas, privadas, comunitárias e confessionais, durante o estado de calamidade reconhecido pelo Decreto Legislativo no. 06 de março de 2020.
A segunda, resultado dos dispositivos legais acima citados, diz respeito à autonomia dos Estados brasileiros quanto ao modo de retomada das aulas, considerando realidades, como o caso de Manaus, capital do Amazonas, na atualidade, colapsada em função do aumento dos casos de coronavírus, os quais resultaram em recordes de internações e de mortes de pessoas vítimas do Covid/19.
Casos que foram agravados e evidenciados, ainda, pela falta de oxigênio nas unidades de saúde, na necessidade de enviar pacientes para outros Estados, na instalação em cemitérios de câmaras frigoríficas.
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Segurança das crianças e professores
Para esses casos desoladores, que exemplificam as singularidades de cada contexto quanto ao enfrentamento do coronavírus, a referida Resolução citada garante, em seu Artigo 7º., que os sistemas de ensino e as instituições de ensino têm autonomia para reorganizar os seus calendários em o seu replanejamento curricular.
De modo que, seja assegurado um modelo de ensino, articulado às competências e aos objetivos de aprendizagem prescritos pela BNCC, que seja acessível a todos os estudantes.
Além disso, o documento orienta que sejam, ainda, estabelecidas, dentre outros aspectos, estratégias que possibilitem um retorno gradual das atividades presenciais, de acordo com todos os protocolos de biossegurança.
O que envolve previsão de reposição de carga horária presencial, períodos de intervalos nas atividades de sala de aula, a fim de garantir a saúde física e mental dos estudantes, além de recessos, férias e fins de semana para dar conta desse objetivo.
Resolução detalhada
Ainda, nessa resolução, dentre outros aspectos, os sistemas de ensino devem registrar, de maneira detalhada, as atividades não presenciais realizadas, para garantir o cumprimento da carga horária de 800 horas, previstas na legislação e nas normas educacionais em voga.
Além de tudo isso, ao seu critério, numa situação de volta às aulas presenciais, tais sistemas de ensino podem oportunizar um processo de avaliação formativa ou diagnóstica que contribuam para compreender os impactos dessa realidade pandêmica mundial na vida dos estudantes.
De maneira mais específica, podem, por meio dessa estratégia, identificar os desdobramentos, no quesito aprendizagem, quanto ao que foi possível de os alunos adquirirem nesse processo, ademais de também reconhecer a sonegação do direito de aprender, em função da inacessibilidade aos meios tecnológicos, provocados pelas diferenças sociais, em função do tipo de ensino ofertado nesse cenário.
Essas questões ainda são endossadas no Art. 8º. da resolução já referenciada, quando autonomizam os sistemas de ensino, em suas diversas configurações, determinar “seu calendário de retorno às aulas, […], tendo em conta análise que identifique os riscos envolvidos na volta às aulas presenciais e, quando possível, apresentar mapeamento dos riscos locais e/ou regionais “ (BRASIL, 2020, p.4).
A importância do cuidado com a aprendizagem
O cenário acima delineado é de extrema relevância, primeiro porque não se pode pensar a aprendizagem, em qualquer contexto educativo, sem levar em conta o momento sócio-histórico no qual esse cenário está inserido.
Segundo, porque a configuração imposta pelo distanciamento social, como uma das ações para evitar a disseminação do COVID, exigiu que as instituições de ensino refletissem sobre novas formas de aprendizagem, de modo que o direito de aprender do estudante fosse, minimamente, assegurado.
Sabemos, todavia, que essa tarefa não foi fácil e, na prática, nem todas as experiências podem ter logrado êxito, haja vista a diversidade de realidades escolares públicas e privadas, realidade que escancara os abismos sociais e a desigualdade de direitos:
- a não preparação prévia das escolas para migrarem do ensino presencial para o ensino remoto, exigindo investimento financeiro e planejamento prévios, o que não foi possível, já que a pandemia “tomou de assalto”;
- a necessidade urgente de se refletir sobre a formação dos sujeitos partícipes do processo educativo em articulação com as exigências do universo das novas tecnologias, o qual requer não apenas letramento digital por parte desses indivíduos, mas condições infraestruturais para acessar esse como um direito fundamental;
- a emergência de novas concepções teórico-metodológicas sobre a aprendizagem nesse contexto.
Sobre esse último aspecto, podemos evidenciar o deslocamento do processo de aprender, comumente vivenciado nos espaços físicos convencionais de sala de aula, na interação professor-aluno, sem a interferência de uma plataforma virtual de ensino.
Sendo materializado, canonicamente, nas aulas expositivas, no cumprimento de conteúdos estabelecidos pelas redes de ensino públicas e privadas, cuja didatização geralmente é materializada no livro didático, para um ensino que de seu remotamente, a distância e de maneira híbrida.
Ensino remoto X ensino presencial
O ensino remoto, por exemplo, trouxe consigo não apenas a ideia de que se estava acompanhando uma atividade ou uma aula remota em tempo real, ou seja, no horário e no dia em que, presencialmente, aconteceriam.
Mas também apontou que sua realização em uma plataforma digital requeria competências e habilidades tanto do docente quanto do discente, que estavam distantes de suas experiências cotidianas, ao acessar o ensino nos seus respectivos papéis.
Do ponto de vista da aprendizagem, novas estratégias didáticas precisaram ser produzidas, assentadas em novos construtos teóricos, no sentido de dar conta de uma nova “sala de aula” em que os processos interacionais, implicados na prática pedagógica, tem agora as novas tecnologias como “parceiras”, as quais exige letramento e acesso a aparatos tecnológicos adequados para lidar com as situações didáticas com mediação pelos imperativos da conectividade.
Nesse sentido, podemos destacar as concepções de aprendizagem ancoradas nas metodologias ativas. Esse construto já em voga, antes mesmo de emergir o ensino remoto, tornou-se um dos pilares, em tempos de distanciamento social, no sentido de envolver os estudantes, tornando-os mais proativos e autônomos e partícipes, de modo integral, no seu processo de aprendizado.
Sobretudo, por considerar um ambiente distinto de aprendizagem, de natureza mais flexível, marcado não apenas pela sincronicidade, mas também pela assincronicidade na proposição das tarefas, já que a relação tempo-espaço nesse novo cenário constituem-se um dado importante a ser considerado.
O estudo sobre o uso das tecnologias digitais no processo ensino-aprendizagem não é recente na educação. Desde o final do século passado, com a introdução do uso dos computadores na escola, diversos estudos têm sido realizados com o objetivo de identificar estratégias e consequências dessa utilização. O envolvimento das instituições de ensino, professores e demais profissionais da educação nesse processo de implementação das tecnologias digitais é considerado um desafio e discussões sobre o tema são recorrentes em diferentes instâncias (BACICH, TANZI NETO e TREVISANI, 2016, p.2).
Nessa perspectiva, dentre as metodologias ativas possíveis, destaca-se a “sala de aula invertida”, caracteriza-se pela inversão da lógica tradicional de ensino, na qual o professor apresenta os conteúdos e afere se os mesmos tem recepção por meio dos exercícios de fixação.
Nesse novo construto, deslocam-se as atividades que antes eram realizadas no ambiente de sala de aula para fora dela.
O que é necessário para aulas presenciais
Assim, avaliar e retomar a aprendizagem na volta às aulas, ainda, em um contexto vigente de pandemia, requer um processo de formação continuada docente urgente e articulado a concepções teórico-metodológicas em que a ação de aprender, tendo que fazer uso da tecnologia educacional, precisa proporcionar ao professor apropriação de estratégias e de recursos didáticos.
Tanto do ponto de vista de um aparato instrumental para lidar com as ferramentas de comando para manuseio eficiente, quanto para, de posse dessas competências, utilizar, a serviço de sua prática pedagógica, matérias como videoaulas, aplicativos, plataformas digitais e multimídias de modo mais amplo.
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Por isso, para além de uma tensão política que, muitas vezes, atende, quase que exclusivamente, à lógica do capital, as instituições escolares, nas suas diversas possibilidades de oferta de ensino, nestes tempos atípicos, precisam compreender que a aprendizagem deve estar articulada não apenas aos modelos teórico-metodológicos que emergem nos cenários educacionais, em função dos imperativos sociais.
Mas, sobretudo, às implicações que tais modos de aprender impactam na formação do aluno, enquanto sujeito diverso, integral e digno de uma cidadania plena.
Fora isso, corre-se o risco de se criar uma falsa “normalidade” educacional, maquiada por entre softwares, plataformas e tecnologias digitais que, em lugar de dar conta da situação atual, hiperconectando o mundo, revele, ainda mais, segregação, inacesso, desigualdade social e distanciamento de uma aprendizagem voltada à autonomia do sujeito.
“Voltar às aulas”, pois, tem sido uma expressão que precisa ser complexificada a partir do binômio aprendizagem-acessibilidade.
Referências
BACICH, L.; TANZI NETO, A.; TREVISANI, F.N. (Orgs). Ensino híbrido: personalização e tecnologia na educação. Porto Alegre: Penso, 2016.
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Conselho Nacional de Educação. Resolução CNE/CP Nº 2, de 10 de dezembro de 2020. Institui Diretrizes Nacionais orientadoras para a implementação dos dispositivos da Lei nº 14.040, de 18 de agosto de 2020, que estabelece normas educacionais excepcionais a ser adotadas pelos sistemas de ensino, instituições e redes escolares, públicas, privadas, comunitárias e confessionais, durante o estado de calamidade reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020. Disponível aqui.
Jorge Lira
Doutor em Educação (Linha de Pesquisa: Educação e Linguagem) pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Mestre em Educação (Linha de Pesquisa: Didática de Conteúdo Específicos) pela UFPE. Especialista em Docência Educacional e Organização Escolar pela Faculdade Integrada de Pernambuco (FACIPE). Graduado em Letras (Habilitação Português/Espanhol) pela UFPE (2003). Graduado em Pedagogia pelo Centro Universitário Internacional (UNINTER) (2018). Graduando em Psicologia na Universidade Estácio de Sá. Técnico em Assuntos Educacionais no Setor de Estudos e Assessoria Pedagógica do Centro de Artes e Comunicação (CAC/UFPE). Professor substituto no Centro Acadêmico de Vitória (UFPE), no Núcleo de Nutrição, na área de Pedagogia, nas disciplinas de Psicologia da Educação e Teorias da Aprendizagem.