Escola: Produção textual durante a pandemia – os memes
Não adianta “negar as aparências e disfarçar as evidências”: já há algum tempo a escola tem o confronto da necessidade de incorporar o mundo digital às suas práticas de ensino e aprendizagem, como se registra nos documentos oficiais.
O que demanda imperativa resumida e destacada, recentemente, na competência geral 5 da BNCC (2018):
Compreender, utilizar e criar tecnologias digitais de informação e comunicação de forma crítica, significativa, reflexiva e ética nas diversas práticas sociais (incluindo as escolares) para se comunicar, acessar e disseminar informações, produzir conhecimentos, resolver problemas e exercer protagonismo e autoria na vida pessoal e coletiva. (p.9)
Entretanto, a incorporação do digital pela escola, de fato, joga-se pra frente, não de forma gratuita, mas, em grande medida e de forma geral, por falta da infraestrutura tecnológica necessária (equipamentos e acesso à internet de qualidade) e da formação de gestores e professores.
Nesse contexto, a pandemia e o isolamento social acelera o processo com o ensino remoto: obriga-se a fazer uma rápida migração da sala de aula concreta para a sala de aula virtual.
Mesmo aqueles que já usavam as tecnologias de informação e comunicação (TICs) na sala de aula, normalmente de forma complementar e subsidiária, precisaram adaptar sua abordagem pedagógica dos conteúdos escolares para o ambiente digital.
E, apesar de estarmos mais ou menos habituados à nova realidade depois de nove meses de escolas fechadas, a situação ainda é desconfortável, mesmo no ensino híbrido, para a maioria dos professores.
Produção textual na escola
Dentre os inúmeros desafios que o professor tem enfrentado está a produção textual no contexto escolar.
Há uma robusta literatura[1] que aborda o “problema” da escrita na escola antes mesmo do contexto pandêmico, o “problema” de a escrita escolar ser – majoritariamente – realizada de forma artificial, realidade que tem desmotivado o estudante nessas atividades: aquela escrita para um único leitor (o professor) com a finalidade (exclusiva) de mensurar a habilidade do autor.
Essa falta de engajamento nas práticas de escrita na escola não é diferente, quiçá pior, no ambiente digital.
A falta de interesse do estudante na escrita no contexto escolar vai na contramão da atuação dele no ambiente digital: ele participa ativamente nas redes sociais, produzindo e replicando conteúdo, comentando e se posicionando quanto aos temas do debate público.
Certamente, nem sempre de forma convincente ou sustentável, nem sempre de forma respeitosa e democrática, nem sempre com compromisso com a informação completa e devida que contextualiza os eventos de interesse público.
Nesse contexto, e encarando a inevitável incorporação das TICs nos ambientes escolares, nós professores precisamos usar esses espaços e ferramentas digitais de produção textual a favor da aprendizagem, assumindo como norte a educação midiática. Afinal de contas, saber “manusear” os recursos digitais (até melhor que nós professores) não é suficiente para saber lidar com as informações.
PNLD 2021 – Objeto 2: Acesse a obra “Estações Linguagens – Volume 2“.
O que é a educação midiática
Educação midiática, segundo o programa “Educamídia” do Instituto Palavra Aberta, é o “conjunto de habilidades para acessar, analisar, criar e participar de maneira crítica do ambiente informacional e midiático em todos os seus formatos — dos impressos aos digitais” e serve para levar os atores sociais a “ler criticamente, escrever com responsabilidade e participar ativamente na esfera pública com vistas à cidadania digital”. Para saber mais, acesse https://educamidia.org.br/educacao-midiatica.
Há consenso na literatura técnica[2] de que as práticas de escrita (e leitura) na escola devem ser contextualizadas, reproduzindo-se, quando possível, as práticas de linguagem reais:
- objetivo comunicativo estabelecido na interação,
- sentidos e perspectivas negociadas para a construção de conhecimento e consensos (provisórios),
- interlocutor delineado e real,
- relações e identidades constituídas na própria atividade de produção.
Nesse sentido, a escrita digital tem grande potencial de reproduzir condições reais de escrita, porque, principalmente, garante aquelas condições reais de produção, simplesmente por estabelecer um leitor diferente do professor.
Diante da dificuldade da produção textual no ensino remoto ou híbrido em meio a uma pandemia, assume-se aqui que os textos digitais são espaços interessantes e produtivos para a escrita dos estudantes, porque, além das condições de produção mais reais, apresentam alicerces interessantes para a atuação no contexto contemporâneo: a multissemiose, a colaboração e a interatividade.
Leia também: A relevância de um projeto de leitura e dicas para a sua estruturação.
A Linguagem Multimodal
Das três bases dos textos digitais, para os propósitos desta breve reflexão, interessa o texto (digital) multissemiótico ou multimodal: textos constituídos pela combinação de diferentes linguagens (imagem, som, movimento, oral, escrita).
Ademais, essa diversidade de recursos disponíveis tem ampliado consideravelmente nossas possibilidades textuais, ou seja, temos mais recursos de linguagem para produzir significados, para expressar pensamentos, para nos comunicar, para interagir na teia social e para construir identidades e relações.
Nesse contexto, a imagem (estática ou não) merece o tratamento como recurso de larga utilização para despertar o interesse dos interlocutores.
Seja para encapsular ideias, para encurtar os processos de leitura, atendendo às transformações pós-modernas do significado de tempo e espaço, em que a comunicação se tornou cada vez mais dinâmica, objetiva, veloz, democrática e globalizada.
Percebemos a imagem disputando lugar com a escrita nos mais variados espaços comunicativos, capaz de veicular valores, ideologias e crenças, e não apenas como um elemento auxiliar ou acessório, mas sim com autonomia.
Meme na escola
Dentre os novos textos que surgiram com o advento e a popularização da internet, e seus recursos interativos, destaca-se o meme.
O termo meme surgiu na obra “O Gene Egoísta” (1976), de Richard Dawkins, para cunhar a ideia do correspondente sociocultural do gene, um material biológico, ou seja, o meme seria uma carga sociocultural que subsiste às transformações sociais, sendo reproduzida em diferentes momentos históricos tal como a carga genética é transmitida de geração para geração.
Também é possível relacionar a expressão meme ao conceito platônico de mimese, ou seja, a representação por imitação.
A partir da origem do nome, podemos conceituar e caracterizar o meme como um texto multimodal (imagético e verbal), constituído pelo processamento (ressignificação) e pela reprodução de informações, disseminado exponencialmente (viral) nos ambientes digitais.
Por outras palavras, uma imagem é retirada de seu contexto original (sem perder com ele algum vínculo) para ser inserida em outro contexto a partir do texto escrito. Na maioria das vezes, é com humor e/ou sarcasmo, promovendo entretenimento, reflexão e debate.
Assim, o meme é um interessante representante dos textos digitais a que estamos expostos diariamente, por ser um espaço discursivo que demanda do autor/leitor sagacidade, criatividade e habilidades linguísticas específicas para lidar com diferentes recursos de linguagem na (re)construção de significados, além de ter um forte apelo ao público mais jovem.
Proposta de produção para a escola
Entre várias possibilidades, é apresentada aqui uma proposta de produção de memes, de forma interdisciplinar entre Língua Portuguesa e Ciência Humanas como Sociologia e Filosofia.
Essas disciplinas, muitas vezes, trabalham com conceitos complexos, que geram alguma dificuldade de entendimento: modernidade líquida, fato social, ação social, mais-valia, estigma, consciência coletiva… e a lista segue sem fim.
E, segundo os estudos da neurociência aplicados à educação, a melhor forma de aprender é… ensinando! Nesse sentido, a proposta aqui é levar os estudantes a se apropriarem dos conceitos sociológicos e filosóficos, por exemplo, criando situações em que eles expliquem esses conceitos.
Com esse objetivo, é sugerido aqui um modelo de meme que viralizou (e ainda é muito popular) nas redes sociais, o “Mas…, não podemos escrever isso aí”, em que um aforismo, ou seja, um texto curto, de uma ou duas frases, de cunho filosófico-moral, que sintetiza uma regra ou uma reflexão, é explicado numa linguagem popular com tom de humor.
O texto, como qualquer meme, é constituído por linguagem mista e tem a aparência tosca e inacabada: a foto do autor como fundo, sobre a qual há um aforismo na parte inferior, a frase que indica o autor e a transposição do conceito ao centro da imagem e, na parte superior, a “tradução”.
Finalmente, a ideia desse meme é a de que o autor elaborou sua reflexão por meio da linguagem informal e teve que, em um segundo momento, adaptá-la à linguagem formal e técnica.
Conclusão
Graficamente, esse modelo de meme não oferece qualquer dificuldade ao estudante e a linguagem informal quanto ao emprego de gírias pode ser um grande motivador para a produção.
Observa-se que esse modelo de meme muito exige dos interlocutores, especialmente do autor, porque demanda uma boa compreensão do conceito teórico, exigindo uma atuação mais reflexiva e crítica, além da criatividade.
Alguns cuidados precisam ser tomados, como na produção de qualquer texto público: adequação ao contexto de circulação e de consumo textual.
É comum o emprego de palavrões e de variantes linguísticas desprestigiadas (norma popular) na confecção desses memes, situação que não deve ser um impedimento, mas um interessante espaço de análise do processo de produção (adequação) e de comportamento no debate público (respeito aos interlocutores).
Finalmente, é preciso observar que a circulação dos memes desta atividade precisa estar para além dos muros da escola, sendo publicado, preferencialmente, nas redes sociais – o “habitat natural” desse texto.
Essa orientação visa garantir que o leitor (coautor) do texto seja significativamente ampliado (a comunidade escolar e a comunidade digital da rede dos estudantes), criando possibilidades e limitações para a escrita.
Sugestões de leitura complementar
Plano de aula (Educamídia) – https://educamidia.org.br/plano-de-aula/memes-na-comunicacao
Artigo (Porvir) – https://porvir.org/sucesso-nas-redes-sociais-memes-tambem-podem-ensinar/
[1] Sugestões de leitura: MARCUSCHI, L. A. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola, 2008. BARROS, Eliana M. Deganutti de. O agir linguageiro e a prática de produção textual na escola. Ling. (dis)curso, Tubarão , v. 15, n. 1, p. 77-94, Apr. 2015. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1518-76322015000100077&lng=en&nrm=iso>. access em 15 Nov. 2020. https://doi.org/10.1590/1982-4017-150105-1214 . Entre outros.
[2] Sugestões de leitura: ANTUNES, Irandé. Aula de português: encontro & interação. São Paulo: Parábola, 2003. GUEDES, P. C. Da redação à produção textual: o ensino da escrita. São Paulo: Parábola, 2009.
[6] Aforismo é um texto curto, de uma ou duas frases, de cunho filosófico-moral, que sintetiza uma regra ou uma reflexão.
Juliana Andrade
Professora de Língua Portuguesa na Educação Básica; licenciada e mestra em linguística pela UFPE.
Contatos: jucandrade@gmail.com – @profajulianaandrade