Ensino de leitura: por que precisamos falar sobre multimodalidade?
O modo como nos relacionamos, seja na condição de leitores ou de produtores, com os textos que fazem parte das nossas práticas de interação cotidianas vem mudando consideravelmente ao longo dos últimos anos.
Falando da evolução que constatamos, principalmente em áreas como a computação, as tecnologias da informação e o design, traduz-se, em parte, pelo desenvolvimento e a disponibilização de novos meios, novas ferramentas, que permitem a aplicação de recursos cada vez mais diversos à produção de textos em diferentes esferas de circulação.
A tecnologia permite que mesmo pessoas que não têm formação em design possam, a partir de aplicativos, de recursos oferecidos por programas instalados em computadores ou no sistema operacional de smartphones, produzir e editar textos, fazendo uso de diferentes famílias tipográficas, ícones e símbolos, adicionando diferentes paletas de cores, criando novos layouts, inserindo movimento a imagens originalmente estáticas, entre outras possibilidades.
Da mesma forma que esse movimento social demanda que nos dediquemos, como produtores, ao domínio dessas ferramentas. E ele exige, também, a formação de um novo perfil de leitor.
Quem é o novo leitor
É consenso, entre teóricos que discutem o conceito de leitura – bem como os processos de recepção e de compreensão de um texto – que se trata de uma atividade interativa, dialógica, social, histórica e culturalmente situada.
Ao leitor, não cabe um papel de passividade diante do texto, mas sim de sujeito ativo, capaz de atribuir significados, de aderir ou não ao que propõe o autor e até de propor um roteiro de leitura diferente do que estava previsto.
Nossa experiência como usuários, na internet, vem amplificando não apenas as possibilidades de interação como a nossa autonomia enquanto leitores.
É possível fazer comentários acerca de um texto, curtir ou não seu conteúdo, compartilhar com outros leitores.
A configuração dos hipertextos nos oferece, através dos hiperlinks, a possibilidade de aprofundamento em determinado assunto, de estabelecer relações entre diferentes textos, de diferentes autores, de modo simultâneo, dinâmico.
É inegável, no entanto, que o uso consciente de todos esses recursos depende do reconhecimento que se faz das potencialidades que eles oferecem e do papel retórico que eles assumem em diferentes contextos. Ou seja, é preciso ter letramento(s).
O que é letramento?
De acordo com Dionisio (2006, p.131), “A noção de letramento como habilidade de ler e escrever não abrange todos os tipos de representação do conhecimento existentes em nossa sociedade.
Na atualidade, uma pessoa letrada deve ser uma pessoa capaz de atribuir sentidos a mensagens oriundas de múltiplas fontes de linguagens”. Consideramos que, ainda que as experiências e as práticas extraescolares contribuam com esse processo, é a escola que desempenha o papel de agência oficial de letramento (cf.Kleiman, 1995).
Partindo desse pressuposto, cabem as seguintes reflexões: é possível ensinar esses multiletramentos?
É possível ensinar o papel dessas múltiplas semioses na construção dos textos? Segundo Lemke (2000, p.269), uma das condições para que isso ocorra é que “professores e alunos estejam plenamente conscientes da existência de tais aspectos:
- o que eles são,
- para que eles são usados,
- que recursos empregam,
- como eles podem ser integrados um ao outro,
- como eles são tipicamente formatados,
- quais os seus valores e limitações.”
Trata-se, portanto, de uma reflexão sobre os usos das linguagens que vai muito além do aspecto puramente linguístico. É preciso discutir o aspecto da multimodalidade inerente aos textos.
Leia também: Por que falar sobre letramentos científicos?
Mas, afinal, o que é multimodalidade?
Gunther Kress e Theo van Leeuwen, dois dos mais importantes teóricos e pesquisadores sobre o tema, defendem que “Todos os textos são multimodais. A língua sempre tem de ser realizada por meio de, e vem acompanhada de, outros modos semióticos” (1998, p.186).
A afirmativa dos autores nos permite perceber que nenhum texto é constituído única e exclusivamente pelo aspecto verbal. Mesmo os textos cuja constituição não contemple recursos como imagens, cores e símbolos diversos são graficamente organizados em um determinado suporte.
Nós vemos e lemos aspectos como o layout (alinhamento, paragrafação, espaçamento entre linhas, uso ou ausência de colunas), tipografia e recursos gráficos como negrito e itálico, por exemplo.
Como argumenta Ribeiro (2013, p.65), “A seleção de um modo de apresentação de um texto já implica uma escolha prévia, um projeto gráfico, nem que seja ao menos embrionário”.
Em se tratando a oralidade, também é possível identificar o uso de outros modos de representação além da palavra: gestos, prosódia, entonação, expressão corporal são recursos indissociáveis da expressão oral, não existe comunicação oral que deles prescinda.
No caso de textos dinâmicos, como filmes, séries, além da imagem em movimento, são importantes recursos composicionais a trilha sonora, a iluminação, o movimento das câmeras, o enquadramento, entre outros.
Conclusão: não existe texto monomodal.
PNLD 2021 – Objeto 2: Acesse a obra “Estações Linguagens – Volume 1“.
As 3 premissas para a adoção da teoria multimodal
As pesquisas sobre multimodalidade vêm crescendo, no âmbito acadêmico, desde a década de 90. Devido ao caráter interdisciplinar da teoria, é possível encontrar trabalhos que recorram aos pressupostos da multimodalidade em diferentes áreas do conhecimento.
A adoção da teoria multimodal, segundo Kress (2000), depende do atendimento a três premissas: a primeira postula que todos os textos são, por natureza, multimodais; a segunda reconhece que, apesar de todos textos combinarem diversos modos, é possível que um deles se sobressaia; a terceira, por fim, reconhece que todos os sistemas de comunicação e representação são multimodais.
A atuação dos modos não deve, portanto, ser analisada de forma isolada, e sim de forma conjunta, orquestrada. Apesar de tais premissas serem defendidas e reforçadas nos trabalhos de diversos autores, é possível identificar equívocos no que concerne à aplicação da teoria, mesmo em documentos oficiais, como é o caso da Base Nacional Curricular Comum (BNCC).
Assista também: Leitura multimodal na escola – Parte 1
Desenvolvimento e aplicação de competências
Ao defender a importância do desenvolvimento de competências e habilidades vinculadas à área de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, especificamente no componente de Língua Portuguesa, o texto da BNCC propõe que as atividades escolares explorem as possibilidades expressivas de diversas linguagens através da análise dos elementos discursivos, composicionais e formais de enunciados em diferentes semioses. A recomendação justifica-se pelo fato de que “(…)
Afinal, muito por efeito das novas tecnologias digitais da informação e da comunicação (TDIC), os textos e discursos atuais (grifo meu) organizam-se de maneira híbrida e multissemiótica, incorporando diferentes sistemas de signos em sua constituição” (BRASIL, 2018, p. 486).
A respeito do texto transcrito, foi adicionada uma nota de rodapé que traz a seguinte informação: “Certos autores valem-se do termo ‘multimodalidade’ para designar esse fenômeno”.
Ao considerar o uso de diversas semioses na constituição dos textos um fenômeno da atualidade, o texto da base comete os seguintes equívocos: considera que os textos produzidos antes do surgimento das chamadas TDIC não poderiam ser considerados multimodais, ou seja, considera a possibilidade da existência, ainda que no passado, de textos de constituição monomodal.
É comum, também, em livros didáticos de Língua Portuguesa, em abordagens sobre os tipos de linguagem usados na composição textual, que esta seja classificada como verbal, não-verbal e multimodal (em substituição à expressão linguagem mista, usada anteriormente).
Conclusão
Sabemos que o processo de transposição dos saberes acadêmicos para o contexto das práticas adotadas na Educação Básica ocorre de forma mais lenta e esbarra, por vezes, em uma série de questões de natureza social, política, ideológica e cultural.
Sabemos também que há uma certa desconfiança, por parte de professores, em relação a novos conceitos e metodologias devido aos movimentos que muitas vezes apresentam discussões antigas travestidas de novidade.
Nesse caso, no entanto, o reconhecimento de que a multimodalidade é uma característica inerente a todos os textos, e não apenas daqueles cuja diversidade de recursos é mais evidente, por conta do forte apelo visual, é determinante para que haja uma mudança no tratamento dado às diversas linguagens nas atividades de leitura e análise textual.
Ao reconhecer que recursos como a tipografia, o layout, a cor, as convenções, são tão importantes quanto a língua para a construção dos sentidos nos textos, os professores – não apenas de Língua Portuguesa, mas de todas as áreas – certamente desenvolverão abordagens metodológicas que contribuam para que os estudantes se tornem leitores mais críticos, reflexivos, autônomos e capazes de interagir em diversos contextos sociais, e para que sejam, enfim, multiletrados.
Referências
BRASIL, SEB/MEC. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC/SEB, 2018. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/
DIONISIO, Angela Paiva. Gêneros Multimodais e Multiletramento. In: KARWOSKI, A. M. GAYDCZKA, B. e BRITO K. S. (orgs). Gêneros Textuais reflexões de ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2006.
KLEIMAN, Angela. Os significados do letramento. Campinas: Mercado de Letras, 1995.
KRESS, Gunther. VAN LEEUWEN, Theo. Front pages: (The critical) analysis of newspaper layout. In: BELL, A.; GARRET, P. (Ed.). Approaches to media discourse. Oxford, UK: Blackwell Publishing, 1998. p. 186-219.
LEMKE, J. Multimedia Literacy Demands od the Scientific Curriculum. Linguistics and Education 10 (3). 2000. p.247-271.
RIBEIRO, Ana Elisa. A importância do design na leitura. In: COSCARELLI, C.V. (Org.). Leituras sobre a leitura. Passos e espaços na sala de aula. Belo Horizonte: Vereda, 2013.p.60-87.
Paloma Borba
É doutora em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). É professora adjunta da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). Atua na área de Linguística, com ênfase nos estudos sobre Gêneros Textuais, Multimodalidade, Letramentos e na Linguística Aplicada ao Ensino de Língua Portuguesa.