Educação das Relações Étnico-Raciais (ERER): visões pedagógicas em disputa
Como pesquisadora e educadora a partir de uma prática antirracista há tantos anos, sempre me surpreendo (de forma negativa) de quanto ainda o conhecimento produzido pela população negra permanece extremamente ausente da educação escolarizada, seja de escolas do ensino básico, seja das universidades.
Esse é um primeiro impedimento enorme para que todas as pessoas possam praticar uma educação que não transforme as diferenças em desigualdade e exclusão.
Uma autora muito lida aqui no Brasil pela intelectualidade negra, Bel Hooks, nos convoca a praticar uma educação engajada e que promova uma emancipação de todas as pessoas envolvidas nela.
Destaco isso porque um dos agentes importantes da educação somos nós, professoras e professores, e, embora não caiba apenas a nós promover mudanças, não podemos retirar nossa responsabilidade do processo.
Caso você, em sua universidade, não apresenta ou muito menos conhece textos de pessoas negras e indígenas, é um problema.
Se o único momento que o tema das africanidades adentra o espaço escolar é em novembro ou com algum projeto pontual, é um problema. No caso você partilha e pratica o silêncio quando surgem inúmeras situações de racismo em sua instituição, isso é um problema.
Se você se acha um profissional muito politizado, mas não entende que parte disso só é possível se trouxermos todo mundo que compõe a sociedade brasileira, é um problema.
E se toda vez que surgem essas temáticas parte-se do princípio de que é a professora ou o professor negro quem precisa capitanear as ações, é também um imenso problema. Essas são algumas situações muito recorrentes em nosso âmbito educacional, seja público ou privado. E essas práticas não vão ao encontro de uma prática emancipatória das relações étnico-raciais.
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E o que podemos pensar aqui sobre o que é, afinal, a ERER?
Muitas pessoas a colocam como algo importante para a construção de uma estima positiva de estudantes negras e negros. Sem dúvidas! Ter personagens nos livros que se pareçam conosco nos ajuda. Ler e aprender sobre o continente africano sem ser a partir de um olhar que só veja escravidão e miséria é fundamental.
Colocar famílias negras construindo comunidades fortes e ancestrais é nos dar a possibilidade de ter nossa humanidade reconhecida.
Todas essas práticas têm o potencial de fazer com que nossxs estudantes performem sentimentos que não o deem vergonha em se autonomear: Sou negra! Sou negro! Faz com que sintam orgulho e curiosidade sobre sua história e de seus ancestrais.
Contudo, é importante salientar que a ERER é para todo mundo. Não apenas para as pessoas negras e indígenas.
Diz sobre um projeto de país que possa mesmo ser melhor para todes. Não podemos construir um país democrático sem as populações negras e indígenas estarem representadas de forma digna das suas contribuições em nossas práticas pedagógicas.
Quais contribuições podemos encontrar através do ERER
Contribuições que se encontram em diversos campos: linguagem; história, pedagogia, engenharia, tecnologia, antropologia, meio ambiente, entre muitos outros. Ou seja, ERER é sobre currículo.
É sobre entender que as ausências ou presenças de forma pejorativa não são aleatórias nem uma opção neutra. Currículo nos informa sobre identidades. Projetos políticos, de nação e de vida!
Como salientam as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, escrita pela Professora Doutora Petronilha Gonçalves em interlocução com intelectuais acadêmicos e dos movimentos negros:
É importante salientar que tais políticas têm como meta o direito dos negros se reconhecerem na cultura nacional, expressarem visões de mundo próprias, manifestarem com autonomia, individual e coletiva, seus pensamentos. É necessário sublinhar que tais políticas têm, também, como meta o direito dos negros, assim como de todos cidadãos brasileiros, cursarem cada um dos níveis de ensino, em escolas devidamente instaladas e equipadas, orientados por professores qualificados para o ensino das diferentes áreas de conhecimentos; com formação para lidar com as tensas relações produzidas pelo racismo e discriminações, sensíveis e capazes de conduzir a reeducação das relações entre diferentes grupos etnorraciais, ou seja, entre descendentes de africanos, de europeus, de asiáticos, e povos indígenas. Estas condições materiais das escolas e de formação de professores são indispensáveis para uma educação de qualidade, para todos, assim como o é o reconhecimento e valorização da história, cultura e identidade dos descendentes de africanos. (http://etnicoracial.mec.gov.br/images/pdf/cne_parecer_32004. Último acesso: 30/11/2020).
Como podemos ver por esse trecho essencial das diretrizes, ao destacar a importância das populações negras e indígenas no campo educacional, estamos sempre discutindo nosso país como um todo. Isso significa que esse tema e as práticas que podem surgir a partir daí são de interesse e construção de todxs que se nomeiam cidadãos brasileirxs.
Para promover essa educação cidadã, é preciso que conheçamos a produção de conhecimento dessas populações também. A seguir, vou trazer algumas perspectivas e intelectuais que são fundamentais de estarem mais presentes nas Universidades e na educação básica.
Por uma prática pedagógica afro-ameríndia: vozes do sul
Existe uma rica produção aqui em nosso país realizada por profissionais que atuam na educação em interlocução com as mais diferentes áreas do saber. Discutir a ERER significa sempre não se deixar fechar às possibilidades TRANSdisciplinares, praticando um conhecimento insurgente e com o olhar voltado para o cotidiano.
Guardadas e respeitadas todas as diferenças entre povos indígenas e negros, diria que são modos de fazer muito próximos porque apresentam como princípios possibilidades, inclusão, língua, criticidade, identidades e ancestralidades.
Ao invés de uma perspectiva de produção de verdades absolutas nas quais não cabem a participação de todes, ensinamos que existem muitas possibilidades de leituras do mundo.
Ao invés de classificar, hierarquizar, colocar em caixinhas de certo e errado, promover desigualdades e praticar exclusões, nos interessa celebrar nossa pluralidade e aprender conjuntamente a proteger a vida humana e a natureza.
Obviamente isso não se dá sem tensões e conflitos, mas costumo dizer que esses são motores não para o aniquilamento de um pelo outro; antes, nos servem como inquietações que nos levam às possibilidades de movimentação e mudanças.
Aliás, a ideia de movimento e TRANSformação são uma característica dessas perspectivas educacionais, o que nos coloca a necessidade constante de nos manter em aprendizado, ao mesmo tempo em que respeitamos e convocamos nossas ancestralidades.
Referências de bibliografia na educação étnico-raciais
- PRETAGOGIA, da Sandra Petit;
- PEDAGOGIA AFRO/DA TRADIÇÃO, da Rosa Margarida;
- PEDAGOGINGA, do Allan Da Rosa;
- PEDAGOGIA DE TERREIRO, da Denise Botelho,
- PEDAGOGIA GRIÔ, da Lilian Pacheco,
- LETRAMENTOS DE REEXISTÊNCIA, da Ana Lúcia Silva Souza,
- ORALITURAS, da Leda Martins,
- ESCRIVIVÊNCIAS, da Conceição Evaristo.
Apresentamos algumas possibilidades de leituras nos campos da Pedagogia, História e Linguagem sobre os modos negros de praticar os mais diferentes processos de ensino e de aprendizagem.
Existe também uma produção intensa hoje no campo das EXATAS e SAÚDE. Literatura e Antropologia/Antropologia da Educação têm sido sem dúvidas pontos de encontros epistemológicos da intelectualidade indígena.
Personalidades de referência
- GERSEN BANIWA,
- CÉLIA XACRIABÁ,
- DANIEL MUNDURUKU,
- TONICO BENITES (Kaiowá),
- AÍLTON KRENAK,
- ELIANE POTIGUARA,
- GRAÇA GRAÚNA (Potiguara),
- CRISTINO WAPICHANA,
- GENI NUÑEZ (Guarani).
Eles são apenas alguns dos nomes que posso citar como exemplo de leituras para a prática de uma educação das relações étnico-raciais.
Acrescentamos a esses e essas pesquisadores/as, escritores e escritoras acima citados os conhecimentos produzidos pela população de descendência europeia que são os únicos que têm sido ensinados e praticados nas Universidades e Escolas.
Importante assinalar que uma Educação das Relações Étnico-Raciais pressupõe que todxs somos racializadxs: Brancos, Negros, Indígenas e outros grupos raciais minoritários aqui em nosso país.
Conclusão
É fundamental essa percepção porque o conceito de BRANQUITUDE precisa se fazer mais presente em nosso campo educacional para que entendamos os deslocamentos necessários para promover de fato uma educação antirracista e cidadã.
Percebam que fui dando nomes, conceitos, perspectivas ao longo do texto para que a curiosidade necessária de ser praticada entre nós professores/pesquisadores/educadores e estudantes possa ser mote das mudanças necessárias para nosso campo.
Quando interrogada com perguntas do tipo: “Não há materiais para estudar? Nunca vi nem soube nada sobre isso. Onde encontrar?”. A primeira resposta é sempre: isso não é verdade!
Há uma plural, rica e diversa produção em muitos âmbitos de intelectuais nessas temáticas. Não é de hoje nem de agora. O fato de você não ter se dado até hoje o trabalho de saber não significa que não existamos.
Contudo, inegavelmente, o que temos agora é uma facilidade enorme de encontrar. Tudo a um clique do seu computador ou celular. Há muita generosidade neste meio. Muita coisa excelente em pdf e sites abertos. Importante e fundamental que essa intelectualidade negra e indígena seja lida e divulgada. Vai lá! Dá um google!
Boa pesquisa! Boas leituras e aprendizados!
Axé!
Kassandra Muniz
Pernambucana. Professora do Depto de Letras da Universidade Federal de Ouro Preto. É integrante do NEABI/UFOP – Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas, autora de artigos e organizou livros também. Ultimamente, vem discutindo o conceito afroepistemológico de Linguagem como Mandinga. Lidera o Grupo de Pesquisa do CNPq: GELCI – Grupo de Pesquisas sobre Linguagens, Culturas e Identidades