Como explicar sobre política e democracia para crianças?
Em nosso país, a constituição da democracia parece estar sempre cercada de muita vulnerabilidade. Temos uma Lei Maior, a Constituição de 1988 que é conhecida como Constituição Cidadã, mas esses trinta e três anos de Constituição nos mostram que há muito a se fazer se quisermos superar as idas e vindas, avanços tímidos e retrocessos devastadores no campo democrático. O caminho mais duradouro para essa mudança de cultura é a educação!
É sobre educação para participação, convivência cidadã e para democracia que convido vocês neste esse papo.
Retomando a nossa Constituição, recuperamos a menção à gestão democrática na Educação Pública. Nas minhas aulas na graduação e na pós-graduação sobre Gestão Escolar, é recorrente a pergunta que me fazem os(as) estudantes: por que não vemos essa gestão democrática que a senhora tanto fala, nas escolas (públicas) que conhecemos?
A pergunta é recorrente por ser muito válida, é a constatação de uma realidade. Mas ainda assim, não estaria considerando de forma mais complexa, o motivo desse distanciamento entre o proposto, o propagado e o vivido cotidianamente no chão da escola.
Estávamos saindo de anos de autoritarismo, então o que conhecíamos se distanciava muito do proposto na Carta Magna.
Foram anos de silêncio, em que não havia qualquer tipo de participação cidadã, a não ser no dia das eleições, mas mesmo essa estava envolta a campanhas atreladas ao assistencialismo e distantes do interesse coletivo. Há, ainda, uma tendência à desresponsabilização dos eleitores, quando dado representante político é eleito.
Ao elegermos esse representante, parecemos assinar um cheque em branco que nos desobriga à participação política de acompanhar o mandato. O autoritarismo conciliado com a educação descomprometida com o letramento político nos forjou e, na atualidade, parece ser mais fácil ser o militante das redes sociais.
As influências internas e externas
O cenário “externo” influencia diretamente a cultura escolar e a forma como os sujeitos percebem o mundo e nele intervém.
Mesmo as escolas ou redes que já tinham avançado no sentido de elegerem os seus gestores, pareciam se contentar com este único viés da gestão democrática. A eleição dos diretores, sozinha, não efetiva a gestão democrática. A eleição não nos exime da corresponsabilização, da construção coletiva e cotidiana do projeto político-pedagógico como centralidade na escola. A participação não pode ser delegada!
Como formar estudantes para a participação e envolvimento com práticas democráticas, desde os anos iniciais?
Primeiro caminho: revendo a postura de todos os(as) envolvidos na formação do cidadão do amanhã. Quando falo “todos(as)”, estou pensando em todos(as) os(as) profissionais que compõem a comunidade escolar. Todos somos responsáveis pela participação e pela constituição de uma gestão democrática.
Façamos algumas perguntas de autoavaliação:
- estamos estimulando que os(as) estudantes se posicionem oralmente?
- Promovemos, junto aos estudantes, a construção coletiva de rubricas de avaliação? Estimulamos a autoavaliação discente?
- Apresentamos abertura para modificar o plano da aula, de acordo com sugestões dos(as) estudantes?
- Estamos promovendo escuta ativa e interessada?
- Estamos respeitando todos os profissionais da escola, mesmo aqueles que não convergem com os nossos ideais/religião/partido político/círculo social/formação acadêmica/tempo de escola/etnia/sotaque, etc?
- Como estamos comunicando, no espaço físico e ciberespaço, o respeito à diferença, ao argumento diverso e à postura didática de quem se compromete com a diversidade?
E sobre a participação e o letramento político
Lembramos qual foi o deputado estadual, o federal, o senador que votamos? Acompanhamos o seu mandato? Conhecemos a função destes representantes? E na esfera executiva? Sabemos o que é esperado de um presidente ou governador ou prefeito?
E na microesfera: como participamos para fazer o projeto político-pedagógico se constituir? Há estudantes envolvidos nas diversas etapas desta participação ou eles são convidados de forma burocrática, para marcar presença pontual e comprovar um certo nível de participação? Está havendo distribuição efetiva de poder com os demais profissionais?
Estas perguntas são para provocar mesmo. Não trazem conforto ou consolo, confesso a vocês, mas alguma angústia, negação, desculpas…
Para educar para participação precisamos ser coerentes!
Os(As) estudantes dos Anos Iniciais observam nossas ações e encontram ali o exemplo da cultura escolar a ser alimentada.
Quais serão nossas ações
Estamos predispostos a rever nossa posição/ação, para então (ou ao mesmo tempo) observar e praticar as seguintes sugestões para educar para participação e democracia? A se pensar… Mas apresento algumas sugestões que podem ajudar um pouco a sanar o mal-estar que posso ter causado; vamos a elas:
- Promover atividades que acessem e valorizem a diferença
Trabalhar com os(as) estudantes a veiculação de diversas culturas, buscando a constituição do respeito ao diferente, ao processo histórico de silenciamento que dado grupo identitário sofre e entender o diferente como diversidade a ser valorizada e não a ser hostilizada e apagada. - Reconhece a influência das redes sociais na cultura
Pesquisar, junto aos estudantes, o impacto do “filtro bolha” das redes sociais na atualização do feed, pois a inteligência artificial que provê o sistema de recomendação nas redes intensifica o apagamento das diferenças e a homogeneização de um único ponto de vista. Se minhas redes sociais só me mostram aquilo com o que já compactuo, conseguirei ver menções ou postagens que divergem do meu ponto de vista, sem estranhamento? A abertura estará ali constituída? - Estimular e subsidiar a constituição de coletivos discentes para representação de pautas coletivas
Ainda não estamos falando de grêmios estudantis, mas propiciar o exercício democrático de ações discentes, descentralizando poder e responsabilidade. Trabalhos em grupo também podem ser o ponto de partida, mas a mediação docente no início é fundamental para a corresponsabilização e trabalho em prol de uma ação em comum. - Instaurar a ética da tolerância
Avaliar distintas perspectivas de um mesmo fenômeno, notícia ou informação. Promover estratégias como o júri simulado, por exemplo, com argumentos sólidos, fundamentados e respeitosos sobre pelo menos dois pontos de vista de um mesmo fenômeno. - Analisar distintas mídias de grande alcance e visibilidade
Trazer para análise coletiva, filmes, comerciais, trechos de novela, programa jornalístico, desenhos, músicas, etc. para desvelar o preconceito ali contido e produzir alguma reescrita ou remix da mídia, para superar tal problema. - Promover divulgação positiva de grupos minoritários
Trazer gêneros textuais e digitais ou produzi-los com os(as) estudantes, para veicular imagem positiva de grupos historicamente marginalizados. - Desconstruir o preconceito veiculado por meio de brincadeiras
Esta é uma ação fundamental para evitar o bullying e o cyberbullying, além de outras manifestações desrespeitosas e criminosas como o racismo recreativo, por exemplo. Fazer o(a) estudante compreender que, em uma brincadeira, todos os lados precisam estar consentindo e se divertindo. - Abrir as portas da escola para a comunidade
Muitas das ações acima podem e devem ser contextualizadas e implementadas junto aos responsáveis, para que o currículo e a responsabilidade com a educação e a escola sejam parte da realidade de toda comunidade escolar. Evitemos acionar a comunidade apenas em eventos e em ações assistencialistas. Promovamos a participação da comunidade no trabalho escolar, fazendo-a compreender o que está sendo trabalhado, como e porquê. - Assumir o letramento digital como parte inerente à constituição da democracia
Trabalhar intensamente o desvelamento das estratégias discursivas veiculadas na rede para manipular, por meio de Fake News ou sensacionalismos. A guerra de narrativas digitais vem se constituindo como o maior obstáculo à democracia nos tempos atuais. Estudemos com afinco as estratégias multimidiáticas de leitura crítica das mídias, o conceito de pós-verdade, a base emocional para propagação de notícias falsas e o risco das deep fakes no cenário político. - Considerar no seu planejamento, as produções digitais já produzidas
Há distintos recursos digitais educacionais, sites, objetos educacionais e jogos que podem contribuir com o planejamento docente voltado para o respeito, para a veiculação de distintas vozes, perspectivas e para promoção da participação. Deixo alguns materiais como sugestão para vocês:
Podcasts sobre segurança on-line
Jogo Caô Digital (MultiRio)
Quiz sobre verificação de fatos (em inglês)
Caçadores de balela
Caça à informação (Flashcards)
Infográfico interativo
Jogo De Olho na Fake (pesquisa de doutorado da USP – doutorando Daniel Cerqueira Silva)
Educação para cidadania – Câmara Legislativa
Plenarinho
Conclusão
Encerro esta nossa conversa com a contribuição mais que fundamental de Gadotti (2002, p. 55):
“Não se pode formar governantes se não forem sujeitos intelectualmente autônomos. […] a escola burocrática não forma governantes, mas governados. Trata-se, portanto, de construir uma escola pública universal – igual para todos, unificada – mas que respeite as diferenças locais, regionais, enfim, a multiculturalidade, ideia tão cara e fundamental da teoria da educação popular.”
Referência:
GADOTTI, Moacir. Escola Cidadã. 8. Ed. São Paulo: Cortez, 2002.
Keite Silva De Melo
Doutora em Educação pela PUC-Rio e professora do Ensino do curso de Pedagogia e da especialização em Gestão Educacional Integrada no Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro (ISERJ/FAETEC), além de ser pesquisadora do grupo de Pesquisa Identidades e Saberes Docentes (GPIDOC/ISERJ/CNPq). Também é professora na rede municipal da SME de Duque de Caxias/RJ, onde atua com a formação de professores pelo Centro de Pesquisa e Formação Continuada Paulo Freire (CPFPF/SME-DC). Em 2019 foi agraciada com o Prêmio Paulo Freire, na categoria: Experiência Pedagógica no Ensino à Distância, pela Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro.