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Consciência cidadã civilizatória ou instinto de preservação individual?

20 de abril de 2021
E-docente

Na aurora dos seres humanos sobre a Terra, quando a claridade da consciência anunciava os primeiros raios de civilização, os sonhos possuíam enorme valor simbólico e deles eram extraídos sinais, mensagens divinas e avisos dos antepassados para avançar ou recuar.

Todas as decisões sobre a vida e a morte dos membros da comunidade ou de tribos inimigas envolviam muita subjetividade e pouca razão.

Com a crescente complexidade das diversas relações entre povos e nações, houve a necessidade de criar regras mais objetivas e que não dessem margem a interpretações oníricas, o que fez surgir leis e condutas éticas mais universais.

Porém, muitas estratégias usadas para a conquista de novos territórios, obtenção de mais recursos naturais ou simplesmente a derrota de um desafeto, subverteram a lógica e a norma para, mais uma vez, de volta ao começo, seguir os instintos mais primitivos de sobrevivência.

Conhecer a história da humanidade é dar-se conta de que, mesmo sob a tutela de leis civilizadoras, as contradições não se apartam da espécie humana, uma vez que oferecem exemplos de lealdade, espírito público e solidariedade, assim como de atos de injustiça e crueldade de soberanos delirantes.

Entretanto, é preciso refletir sobre como e porque as condutas éticas, solidárias, imbuídas de razão e assentadas em séculos de acordos diplomáticos e direitos universais devem ser lembradas e seguidas, apesar das inúmeras falhas em todos os sistemas governamentais. 

Conhecimento de valorização e cidadania

Nesse sentido, também é importante questionar: como extrair, do conhecimento produzido pela humanidade, bons exemplos de valorização da cidadania, sem parecer tratar-se de pura ficção quando comparados aos fatos narrados nos noticiários nacional e internacional da atualidade?

Como destacar que certas normas, regras e comportamentos sociais, procedimentos sanitários, princípios científicos, marcos legais e direitos universais são parte fundamental da sobrevivência da espécie humana? Como tornar esses princípios, tão violados e desprestigiados, parte essencial de uma experiência pedagógica voltada ao desenvolvimento da cidadania?

E, sobretudo, como revelar que a prática da cidadania é uma ação consciente de indivíduos e de grupos humanos empenhados em superar realidades duras e injustas?

Um dos importantes aspectos da realidade social é a vocação gregária dos seres humanos que, assim como alguns animais, formam comunidades.

Alguns insetos (eussociais) possuem certas características gregárias, mas seu grau de organização e cooperação existe apenas em função de aspectos reprodutivos, cuidados com a prole e divisão do trabalho.

As abelhas seguem esse “instinto social” com finalidades bem específicas e realizadas para favorecer a sobrevivência e continuidade da espécie. Para além dos aspectos puramente biológicos, o “ser” e o “estar” no mundo, para humanos, é bem mais complexo. 

Entretanto, a forma como habitamos o planeta, nos organizamos em comunidades e “usamos” os recursos naturais, pode revelar se utilizamos nossa capacidade cognitiva para acertar no presente ou se deixaremos que no futuro prevaleçam nossos instintos de sobrevivência, como fazem outros animais.

Vida social e comunidades urbanas

Nossas comunidades urbanas, nossos grupos sociais e nossas escolas podem e devem fazer uso do conhecimento historicamente acumulado e contribuir para que a atual realidade seja parte da necessária evolução humana. Nesse sentido, chega-se ao desafio da prática pedagógica: como provocar em nossos alunos a tão desejada “atitude ou prática de cidadania”, ou melhor, uma “visão ou espírito de cidadania”?

Uma metodologia de verificação dos danos que certas sociedades provocam no ambiente é a chamada “Pegada Ecológica” e diz respeito ao rastro deixado pelos indivíduos e pelos países, tendo em vista seu padrão de consumo, levando em conta o impacto provocado pelo uso de água, energia e produtos industrializados e como esse consumo interfere no estoque de recursos naturais.

É possível realizar um trabalho de formação da consciência ambiental e cidadã ao verificar a Pegada Ecológica da escola. Existem sites que simulam o impacto individual e de comunidades a partir de uma “calculadora” de Pegada Ecológica, e um exemplo pode ser encontrado clicando aqui.

Além dos danos ambientais provocados pelo excesso de consumo, é importante reconhecer que tais impactos também podem trazer, para o convívio humano, agentes patógenos até então limitados a alguns ecossistemas e absolutamente adaptados a certos organismos.

Um estudo interdisciplinar sobre as grandes epidemias que castigaram a Humanidade ao longo da História pode contribuir no entendimento de certos princípios ecológicos e sanitários, mas, sobretudo, ajudar na compreensão do que seja essencial para a manutenção da vida e da saúde humana.

A pandemia e a vida em sociedade

O atual quadro de pandemia de COVID 19 trouxe importantes discussões, tanto no campo da Epidemiologia e Infectologia como no campo do Direito.

Para os pesquisadores da área da saúde pública, só haverá uma imunidade coletiva se houver a vacinação de grande parte da população e isso não diz respeito apenas a um direito individual, mas a um ato de compromisso com a vida em sociedade.

Para os juristas, o princípio de anteposição da humanidade ao indivíduo é o argumento usado para contrapor-se à decisão de algumas pessoas contrárias à vacinação.

A organização de debates com base em princípios científicos e jurídicos pode ajudar no maior esclarecimento de alunos e seus familiares, ampliando o alcance dos valores da cidadania.

Apesar dos inúmeros desvios civilizatórios relatados pela História, ou mesmo observados na atualidade, a democracia, mesmo que imperfeita, ainda é um sistema de organização social e política capaz de garantir certa representatividade e o direito ao voto é, sem dúvida, uma das instâncias fundamentais desse sistema.

A população percebe o período de campanhas eleitorais e de eleições como o único momento de manifestações democráticas e o exercício de cidadania. No entanto, a participação política é uma prática diária, que envolve a luta por direitos, a fiscalização da administração pública e da atuação dos representantes eleitos, além da organização em movimentos de trabalhadores ou de grupos identitários.

Organização comunitária

Nesse sentido, encontramos nas estratégias de organização comunitária dos diversos movimentos sociais, exemplos capazes de desenvolver nos alunos a percepção da importância do exercício da cidadania e de como essa atuação política traz resultados na vida prática.

Promover discussões sobre os problemas que envolvem a escola e a comunidade escolar, organização de variadas formas de representatividade dos interesses da maioria, seja por meio de eleições, consultas, plebiscitos, enquetes, entrevistas são algumas possibilidades de manifestação dos interesses da coletividade.

Para além dos muros da escola, é possível desenvolver ações pedagógicas que resgatem a história do bairro e da comunidade, atribuindo verdadeiro significado à pesquisa documental e à história oral e iconográfica, com o exercício comparativo entre diferentes tempos e espaços. 

Após a coleta das informações, deve haver uma extensa análise do material recolhido, com a tabulação dos dados quantitativos, a interpretação crítica das realidades observadas e a exposição dos resultados à comunidade.

Nessas ações, ficarão mais evidentes quais são os principais “atores” (sujeitos históricos) presentes nas realidades locais e suas relações com contextos mais distantes. Nesse sentido, surgem novas reflexões, capazes de relativizar os fatos históricos e contextualizá-los em cada época, num entendimento mais complexo do conceito de processo histórico.

A participação dos alunos 

A participação dos alunos nos movimentos cotidianos da escola, o entendimento de cada um como sujeito histórico, partícipe da vida de sua comunidade, é um importante meio de fortalecimento do ideal de cidadania.

Cabe também àqueles que participam desse processo de construção de consciência política dos mais jovens alertar para as contradições e incoerências da sociedade capitalista, para as eventuais frustrações de seus projetos e propósitos, entendendo-os como parte inevitável da trajetória de construção da democracia.

A pedagogia no processo

Ações pedagógicas interessadas na formação da cidadania dos estudantes devem sempre levar em consideração a participação dos alunos na construção de estratégias de investigação, sem as quais não  haverá entendimento do processo que gerou os resultados, esperados ou não.

A perspectiva de formação de uma cidadania mais contemporânea deve incluir a compreensão dos fatores envolvidos nos fenômenos naturais e sociais e o método científico pode ajudar nesse entendimento.

Observação, levantamento de problemas, formulação de hipóteses, experimentação e elaboração de uma “teoria” sobre os fenômenos, mesmo que provisória, são pressupostos básicos para que um assunto possa ser aprofundado. 

No entanto, sem que o pragmatismo do método científico seja um empecilho na formação de uma consciência crítica, porém mais aberta ao novo.

Assim, a investigação das causas, a contextualização histórica, social, cultural e ambiental, a projeção futura das possíveis consequências para certos fenômenos podem e devem fazer parte das diversas atividades escolares.

A importância da escola

A escola é um espaço privilegiado de aprendizagem, pois nele também são reproduzidos valores presentes na sociedade e, muitas vezes, infelizmente, acabam por evidenciar diversos preconceitos.

Porém, a concepção socialmente aceita de definição dos sujeitos femininos e masculinos, por exemplo, é manifestada em atitudes ou atividades banais do cotidiano, que passam a considerar “normais” certas atitudes e a definir como “anormais” outras que fogem aos padrões vigentes. 

Formas de ação pedagógica

É preciso discutir formas de ação pedagógica que mais se aproximem de uma visão humanista e preocupada com a formação integral do sujeito. Oferecer aos meninos apenas espadas, armas e carros e dar às meninas somente miniaturas de utensílios domésticos e bonecas pode sugerir uma pretensa atribuição de habilidades futuras para ambos. 

Nesse sentido, é importante refletir sobre a oferta de brinquedos aos meninos e meninas, pois educadores e pais precisam estar atentos para não reforçar papéis de gênero pré-estabelecidos pelas convenções sociais, o que pode ocultar a hierarquização de poderes.

O desafio para os educadores é tornar situações vivenciadas pelos alunos fontes de reflexão e discussão, evitando que sejam reproduzidos preconceitos e discriminações tão presentes na sociedade atual.

Outro tema bastante importante diz respeito à acessibilidade de pessoas com deficiência. Apesar de ser uma conquista que vem mudando a paisagem urbana com a construção de rampas de acesso, pisos táteis e elevadores para cadeirantes em ônibus municipais e intermunicipais, muitas escolas ainda precisam ajustar seus equipamentos para que toda comunidade escolar possa usufruir dos espaços de aprendizagem. 

Leia também: A educação inclusiva chega ao Ensino Médio.

Buscando sempre envolver os alunos na compreensão dos problemas e na execução das soluções, é possível realizar trabalhos interdisciplinares, capazes de construir novos conhecimentos apropriados para os interesses e necessidades de todos.

Novas áreas de conhecimento

Com a coordenação dos professores, é possível trazer conhecimentos das áreas de Robótica, Física e Matemática para criar pequenas adaptações de espaços físicos, sem, contudo, deixar de promover discussões sobre as realidades sociais que envolvem a vida das pessoas com deficiência. 

As formas de tratamento e os cuidados com termos ofensivos, as cobranças por tratamentos médicos e terapêuticos realizados pelos sistemas de saúde, as ações políticas necessárias para elevar a qualidade de vida de todos os cidadãos, sobretudo os mais vulneráveis, além das competências do Estado para o enfrentamento das questões vividas pelas pessoas com deficiência são assuntos a serem debatidos na escola.

Para além do ambiente escolar e não menos importante do ponto de vista da aprendizagem e do contato com o mundo, o espaço virtual da internet deve ser compreendido como um importante aliado no processo de construção da cidadania.

Nossos alunos estão imersos no universo das redes sociais, em contato com as fake news, o cyberbulliyng, o deepfake, além dos sofisticados sistemas de algoritmos. Esses algoritmos traçam um perfil com conteúdos mais buscados pelo usuário e os apresentam durante a navegação. 

Já as redes sociais usam critérios de relacionamento (perfis mais visitados), temporalidade (as mais recentes têm prioridade) e engajamento (mais curtidos, comentados e compartilhados).

Leia também: Peles e fazimentos.

O estímulo à capacidade reflexiva

Diante desse quadro, seria possível estabelecer algum controle ético ou pedagógico para essas visualizações? Impossível.

Entretanto, é viável estimular certa capacidade reflexiva baseada na compreensão das implicações psicológicas da “presença” do indivíduo no mundo virtual, das estratégias adotadas para veiculação de determinadas mensagens, das ideologias e propagandas que se deseja difundir, e, sobretudo, das consequências do distanciamento do mundo real e sua substituição pelo mundo virtual.

Além das propostas de discussões sobre esses importantes temas, é possível experimentar algum tipo de mediação feita pelos próprios alunos nos chats disponíveis nos ambientes virtuais de aprendizagem, com a criação de códigos de comportamento ético para a veiculação de mensagens ou procedimentos virtuais.

As ações pedagógicas voltadas à formação de uma consciência cidadã podem ser muitas e diversificadas, fazer parte do Projeto Político Pedagógico da escola, ter presença garantida nos planejamentos pedagógicos de professores e coordenadores, mas não trarão efeitos duradouros e incorporados às condutas dos alunos, se não surgirem das suas necessidades e anseios, se não partirem de experiências vivenciadas no cotidiano escolar e se não nascerem de uma perspectiva humanista, crítica, atuante e comprometida com o futuro da Humanidade.

Se sonhos ou devaneios oníricos alimentaram o imaginário de homens e mulheres num passado distante e constituíram o legado de civilização que nos trouxe até o século XXI, continuemos nutrindo a consciência cidadã com bons sonhos, mas sem descuidar da luta por uma realidade mais justa.

Adriana Domingues Gomes 

É geógrafa; mestre em Geociências e Meio Ambiente e professora universitária com atuação em formação de docentes.

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