Base Nacional Comum Curricular (BNCC): desafios para o ano letivo de 2021
A BNCC, homologada pelo Ministério da Educação (MEC), em 2017, constitui-se um marco regulamentário, de caráter normativo, das políticas públicas voltadas à educação, mais precisamente, às etapas e às modalidades de ensino da educação básica, reconfigurando mudanças de ordem teórico-metodológica nas diversas áreas do conhecimento, o que representa não apenas uma reorientação de ordem curricular, mas também estabelece novos itinerários no campo dos saberes e das práticas docentes, quanto à apropriação dessas novas demandas por esses profissionais.
Sabemos que a incorporação de novas proposições curriculares leva um tempo para ser devidamente efetivada. Isso acontece porque tais mudanças afetam o cotidiano escolar, em nível macro, a partir de dimensões infraestruturais, organizacionais e relacionais; e, também, em nível micro, quando das orientações para o tratamento didático dos conhecimentos específicos por área, os quais vão revelar, ainda que de forma subjacente, concepções de sujeito e de um projeto de sociedade atravessados no discurso do currículo vigente.
Todas essas singularidades precisam ser consideradas em um processo de reorientação curricular, pelas consequentes mudanças nos saberes didáticos, as quais mantém relação com a transposição didática feita pelo professor em sala de aula.
Sobre esse momento do processo de transposição didática, Chevallard (1991) vai denominá-lo de “saber efetivamente ensinado”, aquele que ocorre na sala de aula, no momento em que o professor produz o seu texto do saber, isto é, nas decisões que toma, fruto dos saberes que produz a partir da apropriação feita em relação aos saberes de referência, caso da BNCC.
Essa transposição ocorrida na sala de aula pode ser confundida por muitos como mera “transmissão”, parecendo atribuir ao papel do professor uma relação de passividade nos seus processos de didatização. Ou seja: bastaria ter sido exposto às orientações da BNCC para que suas estratégias de ensino reproduzissem as prescrições trazidas neste documento.
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Ação didática e dinâmica
Na contramão dessa perspectiva, em que o professor parece realizar um ofício sem autoria, sem autonomia para “burlar” os saberes instituídos, acreditamos em uma ação didática dinâmica, dialética e contextualizada com a realidade sócio-histórica vigente e seus imperativos. Nesse sentido, compreendemos que os saberes não são fruto de uma transmissão, mas se dão em um processo de apropriação e produção, ou seja, eles estão ligados ao autor profissional e sua pessoa (WEISSER, 1988).
É preciso, pois, uma análise das práticas dos docentes quanto à apropriação dessas prescrições “teórico-oficiais” trazidas na BNCC, e as relações entre suas práticas de ensino de forma mais complexa, sobretudo, em um contexto mundial de pandemia, em que muitos desafios se impuseram.
Além disso, esse contexto pandêmico leva-nos também a refletir sobre as possibilidades de reorientação do próprio documento, nesse cenário, para este ano letivo, no sentido de revisitar as competências e as habilidades previstas para a aprendizagem dos alunos dentro de uma nova conjuntura de ensino, viabilizada pelas plataformas digitais, pelo ensino em EAD, pelo ensino remoto e pelo ensino híbrido e suas metodologias correspondente.
Toda essa contextualização aponta para a necessidade de se reconhecer a plasticidade própria dos documentos curriculares, os quais não podem ser vistos como uma “camisa de força”, mas devem ser considerados artefatos ativos e atentos às dinâmicas que acontecem na sociedade, em um movimento não apenas de adaptação, mas em uma espécie de “trânsito efetivo”, em diálogo e retroalimentado pela ideia de um currículo em ação.
Coronavírus: o inimigo invisível
Nessa direção, os sistemas de ensino que, antes da pandemia do novo coronavírus, tinham, até 2021, como prazo estabelecido pelo MEC, para adaptarem seus currículos à BNCC, precisaram, sem tempo para preparação prévia, adaptar-se a uma sociedade que precisava se proteger de “um inimigo invisível”, cuja orientação mais urgente era, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), ficar em casa, distanciar-se de espaços coletivos, precaver-se de aglomerações, realidade que interrompeu ou suprimiu as atividades escolares que ocorriam presencialmente.
Em tempo, os currículos das instituições de ensino devem ter a BNCC como um documento na construção dos seus projetos políticos pedagógicos, garantindo que os alunos estejam expostos à dez competências (conhecimento, pensamento científico, crítico e criativo, repertório cultural, comunicação, cultura digital, trabalho e projeto de vida, argumentação, autoconhecimento e autocuidado, empatia e cooperação, responsabilidade e cidadania).
Sendo assim, considerando a concepção de competência assumida pela BNCC, quando afirma que se trata da “mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos), habilidades (práticas, cognitivas e socioemocionais), atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho (ano e página)”, de modo a conceber o currículo de maneira flexível, menos engessado, articulado ao contexto regional e as feições próprias de cada instituição de ensino, fica evidenciado, nessa direção, a dinamicidade quanto a uma reformulação do currículo frente às imposições advindas do coronavírus.
Isso não significa que as escolas tenham parado suas estratégias para a implementação do currículo tendo com pilares as concepções teórico-metodológicas baseadas na BNCC, entretanto, tais mudanças não acontecem sem a participação coletiva dos atores do processo educativo, por meio de ações que se deem através, por exemplo, de consultas públicas a docentes e comunidade, de formação continuada de professores, do próprio trâmite para legalização do documento.
É fato, ainda, que muitas dessas ações migraram da presencialidade para o modo remoto, embora saibamos que, em função da imprevisibilidade da pandemia, foi preciso “apagar incêndios” mais urgentes como aqueles impostos pela nova sala de aula que emergia como condição sine qua non.
Cenário remoto e suas imprevisibilidades
Diante, portanto, das intempéries provocadas por meses de aulas não presenciais, buscou-se encontrar outros encaminhamentos, do ponto de vista dos conteúdos, para avaliar a aprendizagem dos estudantes nesse cenário emergencial de ensino remoto.
Sendo assim, foram criados os chamados Mapas de Foco pelo Instituto Reúna e a Fundação Itaú Social, produzidos em articulação com a BNCC, de modo que fosse feita uma seleção de habilidades focadas para cada ano do Ensino Fundamental, na perspectiva de reduzir os impactos de uma implementação de um documento curricular em um contexto, ainda, de desafios na volta às aulas.
Ademais, os mapas de foco se caracterizam como um conjunto de diretrizes, separados por áreas de conhecimento, por meio das quais os conteúdos são descritos ou adaptados.
Podem, ainda, ser considerados como um exemplo muito interessante de como é importante destacar a natureza flexível do currículo, o que se tem chamado de currículo contínuo, em função de aspectos diversos, como, por exemplo, o contexto da pandemia, razão pela qual, tendo em vista a garantia da qualidade do ensino e da aprendizagem dos estudantes, na escola e na sala de aula, em sua versão presencial e virtual.
Dessa forma, a necessidade de reorganização curricular, mobilizadas pela construção dos mapas focais, buscaram:
a) identificar o que seria priorizado, em termos de habilidades a serem ensinadas, diante de um contexto de imprecisão quanto a quando e em que condições se daria a volta das aulas presenciais;
b) reorganizar os planejamentos de aulas e o currículo;
c) selecionar objetos didáticos que contribuísse para potencializar a aprendizagem dos alunos;
d) assegurar que os alunos continuassem a aprender, ainda que a distância (INSTITUTO REUNA, 2021).
Mapeamento de aprendizagem
Por fim, ainda que os mapas de foco se constituam como um recurso para auxiliar as redes de ensino, tendo a função, inicialmente, de contribuir para “correção das distorções e desvantagens educacionais em processo e durante as aulas, isto é, prescindindo da organização de classes de aceleração ou turmas de recuperação paralela” (INSTITUTO REUNA, 2020), no contexto da pandemia, também, se ajustaram a essa situação adversa, por possibilitar que determinadas aprendizagens sejam priorizadas, a partir das relações com as unidades temáticas, os objetos de conhecimento, as habilidades previstas para o ano letivo ou etapas e o processo de progressão dos conteúdos, em vistas de um desenvolvimento integral dos estudantes (INSTITUTO REUNA, 2020).
Para que a execução dessa reorganização curricular de fato se efetive, é necessário, portanto, que, no processo de mapear as aprendizagens a serem eleitas no ensino, sejam considerados conteúdos que se conectem com o cotidiano dos estudantes, que estejam em articulação com outros objetos de conhecimento, que dialoguem com outros componentes curriculares, possibilitando a interdisciplinaridade, e atuem como “caixa de ressonância” na ressignificação dos modos de aprender com vistas a garantia de uma formação para a autonomia dos discentes em quaisquer que sejam os cenários.
Referências:
BRASIL. Base Nacional Comum Curricular em planilha. Brasília-DF: MEC, 2018. Disponível em: BNCC Acesso em: 01 fev. 2021.
CHEVALLARD, Y. Del saber sábio al saber enseñado. Buenos Aires: AIQUE, 1998.
Mapas de Foco da BNCC – Ciências Da Natureza. 2020. DISPONÍVEL: Mapa de foco BNCC Acesso em: 01 de fevereiro de 2021.
WEISSER, M. Le savoir de la pratique: I’ existence precede I’ essence. Recherche et formation, lês savoirs de la pratique: um enjeu pour la recherche et la formation. INRP, n.27, p. 93-102.
Jorge Lira
Doutor em Educação (Linha de Pesquisa: Educação e Linguagem) pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Mestre em Educação (Linha de Pesquisa: Didática de Conteúdo Específicos) pela UFPE. Especialista em Docência Educacional e Organização Escolar pela Faculdade Integrada de Pernambuco (FACIPE). Graduado em Letras (Habilitação Português/Espanhol) pela UFPE (2003). Graduado em Pedagogia pelo Centro Universitário Internacional (UNINTER) (2018). Graduando em Psicologia na Universidade Estácio de Sá. Técnico em Assuntos Educacionais no Setor de Estudos e Assessoria Pedagógica do Centro de Artes e Comunicação (CAC/UFPE). Professor substituto no Centro Acadêmico de Vitória (UFPE), no Núcleo de