Os limites éticos do uso de dados: reflexões para dentro e fora de sala de aula
Quanto conteúdo você criou hoje na internet? Postou alguma foto sua ou de outra pessoa? Opinou sobre algum assunto relevante? Ou apenas compartilhou conteúdos já prontos, postados por autores que você segue?
Ao compartilhar, você automaticamente demonstra estar concordando com quem postou originalmente aquele conteúdo? Podemos, ainda, pensar para além de nossa própria exposição na rede, mas também quando lidamos com dados de outras pessoas. Será que elas gostariam de ser expostas?
Ou melhor: será que elas poderiam ser expostas? Como lidamos com essa superexposição atual na era das redes sociais e da busca incessante por monetização de conteúdos, em que informação vale muito dinheiro? Essa discussão está presente em escolas e universidades?
Bom, “quem me conhece sabe” que meus textos sempre trazem diversos questionamentos (quase sempre com mais perguntas do que respostas).
Essa estratégia é intencional, já que sei da diversidade do público leitor deste blog; então, prefiro que todos reflitam juntos sobre as perguntas e elaborem respostas próprias, baseadas na realidade em que vivem.
O mais importante é que possamos, cada qual dentro de seu contexto, criar estratégias que busquem esclarecimentos e aulas conectadas com o mundo atual.
A monetização da imagem do outro
Primeiramente, podemos partir de um exemplo que criou algumas discussões recentemente: o uso da tecnologia chamada “deepfake” (recurso sobre o qual tratamos no texto “Deepfake e a subversão da frase de São Tomé”, publicado aqui no blog) para recriar a imagem de Elis Regina, contracenando com sua filha Maria Rita, em um comercial da Volkswagen para anúncio da Nova Kombi.
Para além da comoção que o vídeo causou, a principal polêmica girou em torno da utilização da imagem de Elis Regina sem o seu consentimento (obviamente por ela já ter falecido).
Sua filha, a cantora Maria Rita, recebe críticas até hoje por diversas pessoas, que alegam a concessão indevida da imagem da mãe, principalmente pela contradição em propagandear produtos de uma empresa que estivera envolvida com apoios ao Nazismo (à época da Segunda Guerra Mundial) e à Ditadura Militar no Brasil (segundo relatos de ex-funcionários à Comissão Nacional da Verdade, de 2015), contra a qual a própria Elis havia lutado ao longo de sua carreira.
A própria música “Como nossos pais”, composta por Belchior e sucesso na voz de Elis, traz uma crítica direta ao regime ditatorial da época.
Outro caso emblemático é o da greve dos atores de Hollywood, que reivindicavam, entre diversas coisas, uma regulamentação para o uso da inteligência artificial por parte dos grandes estúdios cinematográficos, os quais, por meio de recursos como a deepfake, vêm replicando participação de atores digitalmente em diversas produções. Ou seja, mais uma disputa sobre o uso de dados.
Tais casos mostram a urgência de haver um debate sobre a manipulação de dados para os diversos fins, seja comercial, acadêmico, artístico etc. Mas será que esse tipo de discussão está restrito apenas a conteúdos profissionais como esses citados?
A legislação sobre o uso de dados na internet
Voltando ao ponto tratado já no primeiro parágrafo: quando compartilhamos o conteúdo de outra pessoa em redes sociais, também somos responsáveis por aquilo que lá está?
Como essa circulação de informações na internet é algo recente, a lei brasileira vem, aos poucos, criando regras para controlar esse fluxo de dados.
Um dos assuntos mais discutidos até o momento trata da divulgação e propagação de fake news, cujo projeto de lei (PL 2630, de 2020) ainda se encontra em debate no Congresso brasileiro, gerando mobilização de grandes empresas de tecnologia, as quais conseguiram, até o momento, barrar seu avanço, já que o controle dessas informações traria elevados custos financeiros às mesmas.
Em relação à divulgação de dados pessoais, o principal regramento até o momento é a LGPD (lei 13.709, de 2018, e alterada pela lei 13.853, de 2019). Em seu artigo primeiro, traz a lei:
Art. 1º Esta Lei dispõe sobre o tratamento de dados pessoais, inclusive nos meios digitais, por pessoa natural ou por pessoa jurídica de direito público ou privado, com o objetivo de proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural.
Diversos são os pontos que estão na lei, os quais não serão analisados aqui, já que esse não é nosso intuito. O que vale é estarmos atentos que, nesse momento de exposição cada vez maior de dados, precisamos trazer discussões éticas a respeito dos compartilhamentos de informação feitos no dia a dia de pessoas e empresas.
O monitoramento de nossos dados
Quando acessamos sites e nos cadastramos em redes sociais, somos praticamente obrigados a aceitar diversos termos (os quais, pra sermos sinceros, dificilmente lemos):
- ao comprarmos aparelhos “smarts”, também aceitamos compartilhar diversas informações com as empresas que os fabricam ou que gerenciam seus programas;
- ao nos deslocarmos pelas cidades, somos avistados por câmeras que nos monitoram quase que por todos os lugares, já que cresce o número de empresas (e entes públicos) que investem nesse tipo de tecnologia;
- ao preenchermos um formulário, até mesmo impresso, para fazer um cadastro em uma grande loja de departamento, em uma instituição escolar ou em uma operadora de celular, fornecemos dados sensíveis;
- as crianças, ao acessarem em jogos eletrônicos, também aceitam compartilhar diversos tipos de informações.
Mas, o que estão fazendo com esses dados? Provavelmente você já recebeu uma ligação de telemarketing de uma empresa para a qual você nunca forneceu informações… E o pior é que eles insistem, mesmo com sua recusa em aceitar a proposta feita por eles.
Esses dados chegaram a eles por algum vazamento, como o que foi revelado em 2021 ou por troca de dados (ilegalmente realizada) entre empresas.
Um adendo: exatamente agora, no momento em que escrevo este texto, acabo de ser interrompido por uma ligação de uma concessionária de veículos, convidando-me para um evento que ocorrerá no próximo fim de semana.
O interessante é que o único contato com essa empresa se deu por conta de uma compra em 2009. Ou seja, uma ação como essa, apesar de comum entre empresas, é ética? O uso de nossos dados para contínuas ligações, que interrompem nossos dias, mesmo sem nossa autorização, é algo que deveria ser feito?
E no ambiente educacional?
Expandindo a discussão e focando na nossa área de atuação, precisamos inserir o debate sobre a exposição de dados nos contextos escolar e acadêmico.
Desde crianças e adolescentes até professores e gestores precisam estar a par de todos os cuidados necessários com o tratamento de dados, a fim de que todos estejam mais protegidos (por mais que seja difícil) em relação à exposição indesejada de dados virtualmente que acabe trazendo consequências bem reais.
Uma escola ou creche, por exemplo, possui tanto dados pessoais (como endereço, filiação etc.), quanto dados sensíveis sobre seus alunos (como religião, estado de saúde, orientação sexual). Tais informações podem ser encontrados em forma de fotos, vídeos, relatórios.
É necessário, então, um cuidado redobrado por parte de todos os atores do processo educacional, já que a exposição indevida de uma foto, por exemplo, pode levar a consequências sérias, como diversos tipos de perseguição àquele indivíduo. Por isso, a LGPD traz em suas linhas um regramento bastante rígido sobre esse tratamento de dados.
Mas não só as empresas precisam estar atentas às consequências da divulgação de dados. Pessoalmente, todos nós (adultos, crianças, adolescentes) estamos sujeitos a lidar com dados, tanto próprios, quanto de outros, de forma indevida.
É comum vermos pessoas reclamando de que tiveram sua intimidade exposta sem seu consentimento. E, aqui, vale lembrar, que não tratamos apenas de fotos ou vídeos, mas de quaisquer informações privadas, como localização, credo, preferências políticas.
Autoria e plágio
Lidando com educação, não podemos nos esquecer, ainda, de casos cada vez mais comuns de plágios. A facilidade de se buscar informações na grande rede e o auxílio recente de programas com inteligência artificial (IA) na produção de textos facilita o uso indevido de trabalhos cuja autoria, em muitos casos, sequer recebe origem pela ferramenta.
Até o momento, o ChatGPT, por exemplo, não traz em suas respostas as fontes das informações fornecidas em suas respostas.
Como são construídas, então, as respostas da IA? Quais as fontes? Ao misturar tantos dados humanos, o resultado apresentado é novo, construído inteligentemente pela máquina, ou apenas uma colcha de retalhos plagiada e tomada indevidamente de autores bastante humanos? Julian Fuks (2023) traz sua preocupação a respeito da artificialidade desses textos artificialmente montados:
Precisão, princípio, rigor, lógica, razão. Tudo isso que nos acostumamos a prezar em literatura e arte é quase certo que o cérebro eletrônico saberá dominar. Se alguém transmitir a ele as devidas coordenadas, e se lhe der acesso livre à imensa biblioteca que em alguns milênios a mente humana pôde criar, o cérebro maquinal estará apto a fazer o que autor nenhum jamais foi capaz de alcançar. Poderá emular o que há de melhor na literatura mundial, poderá recompor e recombinar qualidades criando obras inúmeras sob os mesmos moldes, com temas e conteúdos ainda inexplorados. Poderá aprimorar a forma em curvas matemáticas e alcançar os livros mais perfeitos já concebidos por qualquer mente, com olhos de vidro ou olhos de olhos. (FUKS, 2023)
Também há muitas questões referentes a outras formas de artes produzidas por diversos aplicativos de IA, como Leonardo.ai, Midjourney etc., quando criamos imagens baseadas em obras de artistas humanos reais. Como ficam direitos autorais nesses casos?
Onde está a ética?
Sem entrarmos em uma maior discussão dos conceitos filosóficos sobre as diferenças entre ética e moral, temos como significado básico da palavra ética a “reunião das normas de juízo de valor presentes em uma pessoa, sociedade ou grupo social”.
Até o momento, nos diversos casos citados até aqui sobre o uso de dados de terceiros, estão sendo seguidos acordos estabelecidos entre os membros da comunidade? O que precisamos fazer para que a ética esteja presente em todos esses casos?
Bom, sinto decepcioná-la, leitora; decepcioná-lo, leitor… Não consigo trazer as respostas. Porém, acredito que o caminho seja fomentar tais debates, em todos os contextos, sobre o que fazemos e o que fazem com nossos dados, cada vez mais facilmente coletados.
Em casa, na escola, na universidade, na empresa, na comunidade em que vivemos, presencial e virtualmente, conhecer as regras que já existem até aqui e buscar novas regulamentações que protejam a todos e que celebrem um novo contrato coletivo é um dever de todos nós, para que possamos, verdadeiramente, estabelecer limites que mantenham a ética.
Ah, mas essa discussão não termina aqui… Este é apenas um de vários textos do blog que tratam das mudanças que ocorrem no mundo e que demandam ações diretas e urgentes por parte de diversos setores da sociedade. Até a próxima!
Referências
ÉTICA. Dicio: dicionário on-line de Português, 2023. Disponível em: https://www.dicio.com.br/etica/. Acesso em: 16 set. 2023.
FUKS, Julian. A nova morte do autor, substituído agora pelo cérebro eletrônico, Ecoa Uol, 13 mai. 2023. Disponível em: https://www.uol.com.br/ecoa/colunas/julian-fuks/2023/05/13/a-nova-morte-do-autor-substituido-agora-pelo-cerebro-eletronico.htm. Acesso em: 16 set. 2023.
POR QUE comercial da Volks com Elis levantou debate sobre a ditadura. Coluna Splash, Site Uol, 4 jul. 2023. Disponível em: https://www.uol.com.br/splash/noticias/2023/07/04/musica-em-comercial-com-elis-foi-composta-na-ditadura-apoiada-pela-volks.htm. Acesso em: 14 set. 2023.
SABAGGA, Julia. Entenda a greve de atores e roteiristas em Hollywood, Omelete, 15 jul. 2023 e atualizada em 09 ago. 2023. Disponível em: https://www.omelete.com.br/filmes/greve-atores-roteiristas-entenda#4. Acesso em: 16 set. 2023.