Sobre a dimensão interacional da linguagem
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A linguagem é um fenômeno complexo e multifacetado, essencial para a interação humana. Neste texto, exploraremos a dimensão interacional da linguagem, abordando como ela se manifesta no contexto escolar e na sociedade, e como as práticas pedagógicas podem se beneficiar de uma concepção interacionista.
Vamos começar essa reflexão retomando a pergunta com que o professor Antônio Batista introduziu o livro “Aula de português: discurso e saberes escolares”: “quando se ensina Português, o que se ensina?”. Fazemos isto para lembrar a ideia de que a língua portuguesa ensinada na escola não corresponde a que é utilizada nas práticas cotidianas. Vejamos o que nos disse Carlos Drummond de Andrade, em Aula de Português (Boitempo II):
A linguagem
na ponta da língua,
tão fácil de falar
e de entender.
A linguagem
na superfície estrelada de letras,
sabe lá o que ela quer dizer?
Professor Carlos Góis, ele é quem sabe,
e vai desmatando
o amazonas de minha ignorância.
Figuras de gramática, esquipáticas,
atropelam-me, aturdem-me, sequestram-me.
Já esqueci a língua em que comia,
em que pedia para ir lá fora,
em que levava e dava pontapé,
a língua, breve língua entrecortada
do namoro com a prima.
O português são dois; o outro, mistério.
(Disponível em https://www.tudoepoema.com.br/carlos-drummond-de-andrade-aula-de-portugues/ Acesso em 14/11/24).
A Dualidade da Linguagem: Cotidiano versus Escola
O famoso poema de Drummond nos ajuda a dar sentido ao questionamento, uma vez que entendemos que a linguagem falada é aquela que está “na ponta da língua…”, enquanto a linguagem da escola é o desconhecido que, portanto, precisa ser ensinado, “sabe lá o que ela quer dizer?”. Podemos atualizar esses exemplos a partir de um trecho do podcast Mano a Mano, episódio de 10/08/2023, quando Mano Brown conversou com a atual Ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva. Comentando que foi alfabetizada aos dezesseis anos, a ministra também disse que ela e as irmãs eram repreendidas pela mãe quando falavam “fala de gente besta”, que é uma expressão utilizada para a linguagem que aprendiam nas radionovelas, coisas do tipo “mulher”, “colher” em vez de “muié”, “cuié”, como de costume.
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Relacionar o poema à fala de Marina Silva nos fornece uma bela imagem do mundo de mistério, do desconhecido, da imensidão do Amazonas e dos seringais que a linguagem pode abarcar. Voltando ao ensino de Português, não há atividade pedagógica sem uma concepção de linguagem subjacente, como bem enfatiza Antunes (2003). Esses e outros aspectos são debatidos neste texto.
Para assumir a dimensão interacional da linguagem
Quando se afirma que a toda atividade pedagógica de ensino de português subjaz uma concepção de linguagem, exige-se de nós a compreensão de que a seleção e a definição dos objetos de estudos pressupõem um conjunto de princípios teóricos. Isto implica entender que prática e teoria são indissociáveis (Antunes, 2003). Portanto, seja considerando a língua enquanto sistema ou a língua enquanto atuação social, pensando o sistema em funcionamento, estamos alinhados a orientações teóricas.
Partimos da ideia de que é papel da escola ampliar as competências dos alunos nos usos da oralidade e da escrita, aderindo a uma concepção interacional, histórica e situada da linguagem. É em razão disto que Antunes (2003, p. 41) afirma que “a evidência de que as línguas só existem para promover a interação entre as pessoas nos leva a admitir que somente uma concepção interacionista da linguagem (…) pode fundamentar o ensino da língua”. Já sabemos o que queremos do aluno. Vamos, então, pensar em perfis de professor para essa proposta! Vejamos o trecho do filme “O espelho tem duas faces”:
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Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=k2GH5hO1t8g (acesso em 12/11/24)
A cena mostra o professor de Matemática, com pleno domínio e paixão pelo conteúdo que apresenta, entretanto a relação se encerra nesses elementos. Os alunos não parecem estar presentes na perspectiva do professor que, por sua vez, pouco se importa com eles, uma vez que se mostra totalmente inebriado pelo conhecimento. Observem a postura de costas para o público, sem nenhum diálogo, muito menos um movimento de contextualização para que os estudantes, além de entenderem a pertinência da discussão, possam compreendê-la e se perceber fazendo parte do evento aula. Uma vez que são desconsiderados do/no processo, os alunos também desdenham do assunto e fazem outras atividades, menos prestar atenção na aula.
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O que ensinar é fundamental nas práticas pedagógicas. Para que o ensino de Português seja não apenas produtivo, mas também relevante, faz-se necessário tanto na produção quanto na interpretação estudar as regularidades textuais e discursivas. Isso só é possível quando assumimos a concepção interacional da língua, mas também funcional e discursiva porque “língua só se atualiza a serviço da comunicação intersubjetiva, em situações de atuação social e através de práticas discursivas, materializadas em textos orais e escritos”. Vamos pensar essas materialidades a partir de outra cena do filme “O espelho tem duas faces”!
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Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=MplrN-l4qrk (acesso em 12/11/24)
Observem a mudança no perfil docente que passa a envolver os alunos no processo de aprendizagem. Portanto, não se trata apenas de dominar o assunto, no caso do filme, Literatura. A professora igualmente ao perfil do professor anterior tem pleno domínio do conhecimento que ensina, também se mostra apaixonada, mas, sobretudo, contextualiza envolvendo, reconhecendo e valorizando seus alunos (o conhecimento trazido por eles).
Nessa situação, temos o aluno como sujeito da aprendizagem. Ademais, o conhecimento “implica a existência de uma capacidade gerativa, que possibilite encontrar novas respostas para problemas inteiramente novos, em novas situações” (Antunes, 2003, p. 43).
Reflexões sobre a Prática Pedagógica e a Concepção Interacionista
Considerando que, a partir da segunda metade dos anos 1985, era possível perceber sinais de mudança, com a concepção interacionista chegando à sala de aula, às orientações curriculares, à avaliação dos livros didáticos, o que se observa é que a prática pedagógica que persiste no estudo da palavra e da frase descontextualizadas tenha perdido mais e mais espaço. Ao mesmo tempo em que ganha evidência a ideia de que a “linguagem só funciona para que as pessoas possam interagir socialmente” (Antunes, 2003, p. 19).
Para além do Programa Nacional do Livro Didático – PNLD (1985), oferecendo pistas, classificando e contribuindo para qualificação dos manuais didáticos, temos as mudanças legitimadas e mesmo fomentadas após décadas de PCNs (1997), com alguns debates se consolidando na BNCC (2018). Todos esses aspectos repercutem nas avaliações como o SAEB – Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica, nas avaliações estaduais, nos currículos com descritores organizados em torno de habilidades e competências. Estas, por sua vez, são avaliadas em textos de diferentes tipos, gêneros e funções. Adotar uma concepção de língua(gem) interacional e discursiva implica, então, reconhecer que os conteúdos devem ser organizados em torno de dois eixos, a saber: o uso da língua oral e escrita e a reflexão sobre esses usos (Antunes, 2003).
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Ainda que as iniciativas de mudança tenham sido assistemáticas, eventuais e isoladas (em um retrato do início dos anos 2000), olhando para propostas de intervenção desenvolvidas no contexto do Metrado Profissional em Letras (Profletras), podemos identificar ações de mudança com trabalhos centrados no texto e desenvolvidos através de diferentes metodologias. Como exemplos dessas práticas, podemos citar Maria Ladjane Pereira (2016) que, a partir da pedagogia de gêneros, ensinou a escrever o gênero carta de reclamação com vistas a cumprir os propósitos comunicativos, e Elbiane Lima (2017) que propôs atividades de retextualização (do gênero entrevista para biografia), através de uma pedagogia mista, buscando melhorar a autoestima da população mais idosa de Itacuruba-PE, uma cidade reassentada.
Considerações Finais sobre a Dimensão Interacional da Linguagem
Assumir a dimensão interacional da linguagem exige ensinar a oralidade, na certeza de que não é porque chegamos à escola falando que a fala deva ficar fora do ensino. Por isso, é preciso desenvolver habilidades próprias da linguagem oral. Exige entender a produção escrita como expressiva, situada, contextualizada, significativa e cumprindo propósitos comunicativos. Exige o trabalho com leitura para além da decodificação, um estudo do texto com perguntas interessadas em compreendê-lo e capazes de permitir posicionamentos, avaliações, críticas. Exige ainda estudar a gramática para compreender o funcionamento da língua, refletindo as diversidades geográficas, sociais e de registro (Antunes, 2003).
É preciso não perder de vista que todas as ações devem convergir para “ampliar as competências comunicativas dos alunos”. Para além disso, com o propósito de uma formação mais justa e cidadã, discutindo possibilidades de leitura do funk enquanto gênero textual, defendi que:
A aprendizagem só é efetiva quando os alunos conseguem estabelecer relações significativas entre objetos e conceitos. É importante levá-los a compreender que cada grupo sociocultural realiza práticas de leituras e de escritas específicas. Esse aspecto também envolve trabalhar com práticas de linguagem de grupos dominados, mostrar as especificidades linguísticas, textuais e discursivas desses grupos (Gomes, 2016, p. 64).
Em razão disso é que não cabe ao professor persistir na sacralização de certos textos. Isto é, precisamos promover a inserção, o (re)conhecimento de outras vozes, estilos e discursos no espaço escolar. Não se concebe que o ensino promova exclusões, persista numa tradição voltada para poucos privilegiados, oprimindo e silenciando a maioria.
Minibio do autor
Jaciara Gomes atua como professora adjunta na UPE/Campus Mata Norte, onde realiza pesquisas sobre Letramentos na e para a cidadania (ensino de leitura, escrita e educação das relações étnico-raciais). Lidera o Grupo de Pesquisa em Letramentos e Práticas Discursivas e Culturais (LEPDIC) e coordena o projeto de extensão em Culturas Periféricas (CULPERIFA).
Para saber mais
ANTUNES, Irandé. Aula de português: encontro & interação. São Paulo: Parábola Editorial, 2003.
BATISTA, Antônio Augusto Gomes. Aula de português: discurso e saberes escolares. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
GOMES, Jaciara. O gênero funk no ensino Fundamental II: uma leitura possível?! IN: Estudos em linguagens, discurso e tradução. VIII seminário nacional sobre ensino de língua materna e estrangeira e de literatura. I Simpósio Internacional de Estudos em Linguagens. Sinara de Oliveira Branco e Josilene Pinheiro-Mariz Organizadoras. Campina Grande: EDUFCG, 2016, p. 55-71.
LIMA, Elbiane Leal Novaes de Carvalho. A retextualização como estratégia para a escrita do gênero biografia. Dissertação de Metrado. Profletras: UPE/Campus Garanhuns, 2017.
PEREIRA, Maria Ladjane dos Santos. A carta de reclamação na escola: o processo de Reescrita. Dissertação de Metrado. Profletras: UPE/Campus Garanhuns, 2016.
Podcast Mano a Mano. Mano Brown conversa com Marina Silva. Episódio de 10/08/2023. Disponível em https://open.spotify.com/episode/4bKuxIPKxYzTlXqtOkonM8?si=gKCXrlyRRIS6i7G0f1oEXQ (acesso 05/10/2024).