Princípios etnográficos e a prática pedagógica
Por que falar sobre princípios etnográficos? Tanto na escola quanto na universidade, são comuns os questionamentos sobre como podemos aproveitar os saberes desses dois campos sociais para a pesquisa e a prática pedagógica.
Em minhas experiências como professora, pesquisadora e formadora, noto que, tanto na formação inicial como na formação continuada de professores(as), na universidade e na escola, o que está em jogo é a oportunidade de dialogar sobre as diferentes maneiras de entender e fazer Educação.
Esses dois campos de experiência têm legitimidade para produzir sentidos e dizer o que lhe parece mais relevante em teoria e prática. Quando conseguem integrar seus conhecimentos, o processo educacional torna-se muito mais respeitoso.
Quer saber mais sobre como os princípios etnográficos podem auxiliar a prática pedagógica e a pesquisa em educação? Então, confira o conteúdo que preparamos sobre o tema!
Como os princípios etnográficos podem auxiliar a prática pedagógica?
Este artigo tem por objetivo apresentar alguns princípios da etnografia em Educação, aqui entendida como ferramenta teórico-metodológica para compreender a cultura escolar e subsidiar a reflexão de professores e pesquisadores em Educação. Acompanhe!
O que é a Etnografia em Educação?
A perspectiva etnográfica já está bastante consolidada na Educação como abordagem teórica e metodológica de pesquisa.
Mas suas primeiras manifestações ocorreram desde as viagens do período da expansão comercial e marítima, nos séculos XVI e XVII, quando poetas, missionários e viajantes europeus descreviam em cartas suas vivências e o comportamento dos povos de culturas diferentes por onde passavam.
Conforme as pesquisadoras em Educação Judith Green, Carol Dixon e Amy Zaharlick, no artigo A etnografia como uma lógica de investigação (2005), ao longo do tempo e por diferentes motivos históricos, o ponto de vista etnográfico foi se modificando e aperfeiçoando sua lógica.
No século XVIII, a experiência etnográfica esteve relacionada à teoria interpretativa, quando estudiosos passaram a se interessar pela vida e perspectiva de pessoas com pouca ou nenhuma voz na sociedade.
No século XIX, esteve ligada ao surgimento da Antropologia, como disciplina metodológica desse campo de estudo.
Já no século XX, os estudiosos passaram a investigar o que era uma “boa prática” em pesquisas etnográficas, procurando-se estabelecer os critérios dessa abordagem.
Segundo as pesquisadoras citadas, a Etnografia em Educação, para ser considerada como tal, tem por base os princípios estabelecidos pela Antropologia Cultural e pela Etnografia em Comunicação, e é entendida como “[…] uma abordagem conduzida teoricamente, envolvendo uma perspectiva contrastiva por meio da qual fenômenos ou práticas são estudados (GREEN, DIXON, ZAHARLIC, 2005, p. 28)”.
Achou o conceito complicado?
Confira, a seguir, os princípios que sustentam essa lógica teórico-metodológica!
Entender a escola (e a sala de aula) como local de produção de cultura
Todos os campos sociais, entre eles a escola, possuem um conjunto de práticas que têm por base princípios construídos por seus membros.
Assim, o(a) pesquisador(a) e o(a) professor(a) que se lançam na abordagem etnográfica em Educação procuram, conscientemente, observar o espaço escolar (seja uma biblioteca, uma sala de aula etc.) como lugar onde essas práticas culturais são construídas coletivamente.
Conforme Green, Dixon e Zaharlic (2005, p. 28-29), o objetivo é compreender “[…] o que os membros precisam saber, produzir, entender e prever, a fim de participar como membro desse grupo”.
Essa construção leva em conta os papéis e relações sociais, as normas e expectativas, os direitos e deveres dos membros, que constituem o sentimento de pertencimento a esse grupo local, ou seja, práticas que caracterizam os hábitos, as crenças e os sentidos produzidos pelos membros.
A título de exemplo, nos Novos Estudos do Letramento, em 1982, a pesquisadora norte-americana, Shirley Heath, elaborou a noção de eventos de letramento a partir da perspectiva etnográfica.
Esses eventos são as situações em que a escrita medeia a interação entre os sujeitos. Ter um olhar etnográfico sobre os eventos de letramento, como exemplifica Marinho (2010, p. 80):
A pergunta fundamental do olhar etnográfico, que tanto o(a) professor(a) como o(a) pesquisador(a) devem fazer, é: o que está acontecendo aqui?
E, orientados(as) por teorias de cultura e teorias de sociais, devem construir interpretações sobre a cultura do espaço analisado (atividades, espaços, objetos, atores etc.).
Analisar a cultura escolar do ponto de vista êmico
Para compreender a cultura escolar, o(a) professor(a) e o(a) pesquisador(a) devem assumir uma posição de membro participante daquele grupo.
Isso implica mudar o olhar de quem apenas observa — o ponto de vista ético, ou seja, de uma pessoa estranha àquele grupo — para o olhar de quem vivencia aquela cultura — o ponto de vista êmico, ou seja, de um membro do grupo.
Para tanto, mesmo fundamentado(a) em teorias sociais e de cultura, o(a) professor(a) e o(a) pesquisador(a), deve partir das práticas efetivas dos membros, buscando entender como e por que os membros daquele espaço atuam, pensam e nomeiam e caracterizam suas práticas como tal.
Portanto, não se pode fazer descrição negativa das práticas, ou seja, apontar o que não se faz ou o que se deveria fazer, porque assim o(a) professor(a) e o(a) pesquisador(a) estão baseando-se nos seus próprios critérios, nas suas próprias.
Ao contrário, o objetivo é compreender o ponto de vista e a atuação do outro, dos membros, buscando as crenças e sentidos produzidos em seus fenômenos.
Como afirma o pesquisador Brian Street no campo dos letramentos na perspectiva etnográfica: “[…] do ponto de vista etnográfico, precisamos ir além e começar a perguntar: ‘Que outras categorias podem existir para se entender o mundo e estar no mundo’” (STREET, 2010, p. 44)
Interpretar a cultura escolar a partir de uma abordagem contrastiva e holística
Ao interpretar a cultura escolar do ponto de vista etnográfico, é inevitável que o(a) professor(a) e o(a) pesquisador(a) coloque sua própria interpretação na descrição daquela cultura, pois, como dissemos no princípio anterior, deve-se vivenciar as práticas como membro desse grupo.
Mas essa interpretação precisa estar baseada numa metodologia que contraste métodos/técnicas, teorias e dados produzidos, a fim de que se tenha uma percepção holística daquela prática cultural.
Ou seja, é preciso ter uma visão não só do comportamento específico naquele contexto local, mas sua relação com os aspectos globais, como forças políticas e institucionais externas, que influenciam as práticas.
Isto é, ir além do que se vê na sala de aula, na biblioteca, no laboratório, na escola. Ir do local para o translocal — aquilo que atravessa o contexto imediato e condiciona o que faz daquela prática ser aquela prática. A própria relação global-local.
Isso implica também considerar o processo interativo-responsivo, isto é, estabelecer uma relação dialógica com os dados que estão sendo produzidos, isso inclui fazer perguntas aos membros para saber se a interpretação do(a) professor(a) e do(a) pesquisador(a) converge com a dos demais membros do grupo.
Nesse processo interativo-recursivo, diferentes questões vão sendo geradas e é preciso sempre voltar aos dados para redefinir aprofundamentos, questionamentos e o foco da pesquisa ou do entendimento.
Outras considerações
Neste artigo, apresentei princípios etnográficos gerais que podem nortear tanto a pesquisa quanto a prática pedagógica em Educação.
O(A) leitor(a) pode perceber que o que está subjacente a esta proposta é olharmos para o espaço escolar como campo social em que diferentes sujeitos — professores(as), alunos(as), coordenadores(as), diretores(as), bibliotecários(as) e demais agentes — produzem coletivamente suas práticas culturais.
A cultura escolar pode ser entendida como os princípios de práticas que os membros de um grupo usam para nortear suas ações uns com os outros.
O conhecimento cultural, portanto, não é fixo, mas aberto ao desenvolvimento, à expansão, à revisão pelos membros de um grupo à medida em que interagem através do tempo e dos eventos (GREEN, DIXON, ZAHARLICK, 2005).
As práticas culturais não correspondem só às ações, aos ditos, mas também ao conjunto de aspectos invisíveis, como valores, crenças, sentidos etc.
Tanto em situação de pesquisa como de prática pedagógica, o olhar etnográfico considera a alteridade, isto é, a capacidade de se colocar no lugar do outro, o sujeito da pesquisa ou da experiência pedagógica, a fim de compreender sua maneira particular de compreender e agir no mundo.
Esse olhar considera também os sujeitos de pesquisa ou da experiência pedagógica como sujeitos ativos, que trazem para o espaço escolar diferentes trajetórias de vida e, por isso, variadas leituras de mundo; não podendo ser tratados como meros sujeitos passivos, receptáculos de teorias e métodos.
Além disso, essa perspectiva tem por base a relação dialógica entre os sujeitos, no sentido de que as interações sociais situadas no contexto específico da pesquisa ou da experiência pedagógica como são atividades interativas de produção de sentido, em que resgatamos as vozes sociais e apreciamos os fenômenos atribuindo juízos de valor que revelam nossa maneira de pensar e agir.
Para se inspirar: exemplos de pesquisa etnográfica em Educação no Brasil
Como defendido, os princípios etnográficos podem ser compreendidos para incorporação tanto na prática pedagógica como na pesquisa em Educação.
A seguir, você pode se aprofundar um pouco mais sobre a lógica etnográfica.
Sugiro, em especial, a leitura do livro A Pesquisa Etnográfica em Alfabetização, Leitura e Escrita (2021), que traz uma coletânea de pesquisas em nível de mestrado e doutorado realizadas pelo Grupo de Pesquisa em Alfabetização, Linguagem e Colonialidade (GPEALE).
Nessa obra, todas as investigações procuram compreender práticas de alfabetização, leitura e escrita na Educação Básica, na Educação de Jovens e Adultos e na universidade, pelo viés etnográfico cujos princípios tratamos neste artigo.
Embora a lista abaixo traga referências de pesquisas realizadas no campo da Educação com ênfase em Linguagem, as leituras certamente inspirarão professores(as) de diferentes áreas, pois os princípios etnográficos falam de uma abordagem ética na pesquisa e na prática pedagógica, o serve de base a qualquer área de conhecimento. Espero que você se inspire!
Gostou de saber mais sobre como os princípios etnográficos podem auxiliar a prática pedagógica e a pesquisa em educação? Então, confira nosso conteúdo sobre a Prática de ensino de Produção de Textos por Habilidades em Língua Portuguesa!
Izabela Pereira de Fraga é doutoranda e mestre em Educação (PPGEdu/UFPE), na linha de pesquisa Educação e Linguagem, investigando práticas de letramento acadêmico. É também licenciada em Letras Português e Espanhol (UFRPE). Atua como revisora de textos em português. Tem experiência com formação inicial e continuada de professores da Educação Básica com ênfase na área de Língua Portuguesa. É integrante do Grupo de Pesquisa em Alfabetização, Linguagem e Colonialidade (GPEALE), vinculado à Universidade Federal de São João Del-Rei (UFSJ) e da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e registrado no CNPq. E-mail: izabela.fraga@ufpe.br
Para se aprofundar
HEATH, Shirley B. What no bedtime story means: narrative skills at home and school. Language and Society, v. 11, p. 49-76, 1982.
MACEDO, Maria do Socorro Alencar Nunes. Contribuições Teórico-metodológicas para a Pesquisa sobre Letramento na Escola. Educação & Realidade, [S. l.], v. 45, n. 2, 2020. Disponível em:https://www.scielo.br/j/edreal/a/DPMG6MLvwsLSBr3CSCs99Tb/?lang=pt . Acesso em: 22 out. 2022.
MACEDO, Maria do Socorro Alencar Nunes. A Pesquisa Etnográfica em Alfabetização, Leitura e Escrita: a experiência do GPEALE. Curitiba: CRV, 2021. v. 1. 202p. Disponível em: https://drive.google.com/drive/folders/19SrM_AJTf_EpMdzF1y2wmeGHkhNhegCo. Acesso em: 22 out. 2022.
MARINHO, Marildes. A Escrita nas Práticas de Letramento Acadêmico. Rev. Bras. Ling. Apl. Belo Horizonte, v. 10, n. 2, p. 363-386, 2010.
STREET, BRIAN. Os Novos Estudos sobre o Letramento: histórico e perspectivas. In: MARINHO, Marildes; CARVALHO, Gilcinei Teodoro (Orgs.). Cultura Escrita e Letramento. Belo Horizonte: UFMG, 2010. p. 33-53.