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“Português é muito difícil”: como potencializar o ensino de LP a partir da realidade do estudante

15 de agosto de 2024
E-docente
Português é díficil? Veja a reflexão de que a Língua Portuguesa é díficil de aprender

O ensino da Língua Portuguesa é frequentemente considerado um grande desafio, tanto para professores quanto para alunos, que muitas vezes se deparam com a complexidade da gramática, da interpretação de textos e da produção escrita. A percepção de que “Português é muito difícil” pode afastar o estudante, tornando o processo de aprendizagem mais árduo.

No entanto, essa dificuldade pode ser superada quando o ensino é potencializado por abordagens que consideram a realidade e as experiências dos próprios alunos. Integrar conteúdos que dialoguem diretamente com o cotidiano e os interesses dos estudantes pode tornar a aprendizagem mais significativa e motivadora, facilitando o entendimento e a aplicação prática da língua. Neste contexto, é fundamental repensar estratégias pedagógicas que, ao invés de se aterem exclusivamente às regras tradicionais, acolham as vivências dos estudantes como ponto de partida para a construção do conhecimento em Língua Portuguesa. Veja a seguir a explicação e o que o professor Tiago da Silva Ribeiro acha sobre o assunto:

Português é realmente muito difícil?

– Alunos, escrevam agora, em 30 linhas, em 50 minutos, um texto dissertativo-argumentativo, na linguagem formal, que fale sobre o papel cultural da música clássica na Europa no século XIX. Valerá nota de zero a dez.
– Vamos discutir antes sobre o tema, professor?
– Não, precisamos seguir o planejamento. Vamos, pois seu tempo está passando.

– Turma, como sabem, a cultura brasileira, musical e literária, é composta por grandes nomes, como Chico Buarque, Tom Jobim, Nara Leão.
– Quem, professor?
– Nara Leão.
– Eu curto Mc Cabelinho! O senhor conhece?
– Não!
– Então a música dele não é considerada cultura?
– Claro que não!

– Conjugue o verbo comprar no pretérito mais-que-perfeito do indicativo:
– Professor, para que serve isso?
– Para você aprender a falar e escrever corretamente, claro.

Essas situações são familiares a você? Aulas de língua portuguesa que abordem a língua nesse viés ainda são regra nas escolas em que trabalha ou ficaram no passado? Ok, os exemplos podem até ser exagerados (será?), mas, infelizmente, é comum presenciarmos muitos alunos, tanto em escolas particulares quanto públicas, desinteressados em aulas de língua portuguesa e literatura e que aumentam o coro, muito presente no senso comum, de que “português é muito difícil”.

Leia mais: Habilidades de Leitura e o Ensino da Língua Portuguesa

Fico pensando: como a abordagem do componente curricular que trata de nossa língua, a qual praticamos o tempo todo, diariamente, pode ser considerada difícil e desencorajar as pessoas a se expressarem? Bom, trarei aqui algumas hipóteses para essa questão.

Nossa língua é viva, está em constante mutação, adaptando-se a cada contexto, a cada pessoa com que falamos, a cada época, para atender a objetivos específicos, provocar reações próprias. Outro ponto é a questão do desejo, do interesse. Uma das coisas que nos move como seres humanos pensantes é o prazer, estar envolvido com algo que nos seja familiar, nos desperte vontade de ali estar, participando daquele processo e mostrando o que temos a contribuir com a situação.

Entender a razão de estar em determinado lugar, discutindo determinado assunto, sabendo o porquê de aprender uma disciplina também é decisivo para que possamos nos esforçar para desenvolver competências específicas dentro de um espaço escolar. Tenho de produzir um texto por quê, para quem, com qual objetivo?

…a abordagem funcional da língua, abordada por Halliday, é extremamente útil no contexto escolar, já que, a partir dela, podemos apresentar ao aluno as diferentes possibilidades de uso de sua língua, entre as quais o uso adequado da variedade padrão. (TAGLIANI, 2004)

Também não podemos nos esquecer da liberdade de expressão para mostrarmos o que pensamos, mesmo que vá de encontro àquilo que seja esperado como resposta pela escola. Por isso, a escola precisa acolher as contribuições que os alunos levam às aulas.

Reflexão sobre a língua portuguesa

Agora, reflitamos: a escola e o ensino da língua levam esses fatores em consideração? A vida e os interesses dos alunos, em sua multiplicidade, são contemplados no planejamento da disciplina de língua? Os diversos “portugueses” são vistos em sala ou somente O PORTUGUÊS, maiúsculo, complexo, distante?

Quando nos encontramos com amigos para tomar um chope, ver um filme ou conversar sobre amenidades, procuramos deixá-los à vontade ou já começamos a tratar de coisas que não fazem parte de sua realidade? Para despertar o interesse de alguém, é necessário que, conhecendo-o, levemos em consideração suas paixões, aquelas coisas que fazem seus olhos brilharem para, a partir desse momento, apresentarmos novas realidades. Deveria ser assim em toda e qualquer abordagem pedagógica, principalmente, quando tratamos do ensino da língua, tão presente em nosso dia a dia.

Bom, sabemos que o ensino de uma língua é um processo complicado, mas ele também move medos, amores, interesses. Como querer apresentar como interessante algo que não faz sentido para um aluno, que está totalmente fora de seu contexto? Então, proponho alguns caminhos que, a meu ver, criam laços entre o praticante e a língua.

Se conhecemos a realidade de nossos alunos e a levamos em conta na nossa prática, fica muito menos complicado despertar seu interesse. Em uma turma com dezenas de alunos, claro que são múltiplas as realidades, mas um mapeamento por meio de acesso a dados tanto administrativos quanto de pesquisas realizadas nas aulas nos ajudará a buscar materiais que os atraiam. Para isso, é necessário que nós, professores, estejamos dispostos a buscar novas abordagens sobre o ensino da língua portuguesa, abordando perspectivas como a funcional de Halliday, linguista de que trata o artigo já citado anteriormente de Tagliani (2004), que busca analisar o contexto de uso da língua; a visão descritiva de Bagno (1999), que abandona a visão de “certo ou errado” do ensino de língua portuguesa, já que a norma padrão não dá conta de todas as relações que vivemos em nosso dia a dia; e outros estudiosos que entendam o português como vários.

Importante deixar claro que a responsabilidade dessa mudança de postura do ensino não é só do professor, como ressalto em todos os meus textos, mas de todo o sistema escolar, universitário e político. Não é simples romper com um método que atende às elites, as quais se utilizam da supervalorização da norma padrão da língua para manterem seu poder e continuarem silenciando todos que acreditam “falar errado”.

Conclusão

Retomando exemplos dados no início do texto, reimaginemos aquelas situações. Todas elas se dão após o professor conhecer a realidade de seus alunos e saber de suas preferências:

Após todas as pesquisas que fizemos sobre os diversos gêneros jornalísticos, vamos, em grupo, montar um jornal que será publicado no blog da escola. Cada grupo ficará responsável por uma seção. Depois, faremos juntos uma revisão para sabermos se estão em uma linguagem adequada para ser divulgado e compreendido pelo público-alvo. Podemos, como atividade posterior, editar seções do jornal para serem divulgadas em redes sociais, cada qual com seu formato específico.

Reunimos, aqui, os principais artistas de interesse de todos vocês da turma. Agora, podemos organizar os grupos para fazerem pesquisas e apresentarem quais as principais influências desses artistas, destacando suas origens e qual o seu público. Por que utilizam esse tipo de linguagem? Será que, se usassem a linguagem formal, seriam compreendidos? Qual a diferença entre eles e artistas como Chico Buarque, Caetano Veloso e outros nomes que vemos na grande mídia?

No texto Olhos D’água, de Conceição Evaristo que estávamos trabalhando, temos o trecho: “Uma noite, há anos, acordei bruscamente e uma estranha pergunta explodiu de minha boca. De que cor eram os olhos de minha mãe? Atordoada custei reconhecer o quarto da nova casa em que estava morando e não conseguia me lembrar como havia chegado até ali.” Onde encontramos o verbo no pretérito mais-que-perfeito do indicativo? Qual o efeito que esse tempo verbal traz para o sentido do que ela quis dizer? Como podemos criar frases com o mesmo efeito?

Será que é tão difícil de criarmos planejamentos para o ensino da língua portuguesa que levem em consideração esses aspectos? Apesar de todas as dificuldades que enfrentamos em sala de aula e que não dependem apenas de nós, professores, para serem solucionadas, há pontos que podem ser trabalhados. A chave está no olhar, na escuta, na sensibilidade em estar atento ao que o outro deseja, ao que o outro busca.

A língua portuguesa, assim como os interesses, não é apenas uma, mas muitas. Não, português não é difícil. Difícil é nos dedicarmos àquilo que não nos interessa.

Referências

BAGNO, Marcos. Preconceito Linguístico: o que é, como se faz. São Paulo: Edições Loyola, 1999.

EVARISTO, Conceição. Olhos d’água. Pallas Editora, 2016.

TAGLIANI, Dulce. A perspectiva funcional da linguagem de Halliday e o ensino de língua portuguesa. VIDYA, v. 24, nº 42, p. 109-116, jul./dez., 2004. Disponível em: https://periodicos.ufn.edu.br/index.php/VIDYA/article/view/408/382. Acesso em: 21 out. 2023.

Breve resumo do autor

Tiago da Silva Ribeiro é professor do Magistério Superior no Instituto Nacional de Educação de Surdos nas disciplinas de Língua portuguesa e Tecnologias da informação e comunicação. Tem experiência em turmas do Ensino Fundamental e Médio, além de já ter atuado na modalidade on-line como mediador, orientador de trabalhos finais de curso, desenhista educacional, professor-autor e coordenador de curso. Seu Doutorado em Letras é pela PUC-Rio e teve como tema de trabalho o Internetês. Busca aprender novas línguas portuguesas a cada dia, sempre observando o que se passa a seu redor.

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