A Matemática e o cotidiano
Para inserir o contexto da matemática e o cotidiano nos alunos, vamos utilizar um exemplo interessante. Imagine que um dia você acorda com uma sensação estranha e, ao abrir os olhos, você percebe que sua visão está diferente.
Você desenvolveu um superpoder que permite aumentar o campo de visão, detalhar elementos microscópicos, de modo que você consegue enxergar os pixels[1] que formam uma imagem, além de observar as linhas, ondas e tangentes que estão presentes no universo e que, normalmente, não conseguimos ver.
Você ficaria animado ou preocupado? E se eu disser que esse superpoder está ao alcance de nossas mãos, você se surpreenderia?
Pois é, com o uso de câmeras dos smartphones, por exemplo, é possível ampliar nossa habilidade visual e identificar com mais facilidade um fractal[2] ou entender visualmente como a sequência de Fibonacci é utilizada na arte, com a proporção áurea, que representa matematicamente a “perfeição da natureza”.
Muitas vezes nos retemos ao pensamento sobre como seria interessante desenvolver uma super habilidade, como um super-herói, mas esquecemos que alguns deles não possuem superpoderes. Eles se destacam por saber utilizar os diversos recursos e invenções que tem à disposição, para poder ampliar suas habilidades e se tornar um super-herói.
Então, que tal explorarmos o mundo da imaginação e tentar integrar, dentro da lógica aristotélica, nossos sentidos para analisar as experiências? Convido você a usar os avanços do conhecimento científico e tecnológico para expandir nossas potencialidades sensoriais.
Saber utilizá-los ao nosso favor nos leva a compreender melhor o mundo em que vivemos e permite que, como professores, enxerguemos todas as potencialidades que podemos desenvolver ao entender algumas das relações existentes entre os elementos do universo.
Isso inclui entender a relação entre as áreas de conhecimento e desmistificar a ideia comum de que alguns conhecimentos vistos na escola não se aplicam no dia a dia.
[1]Unidade mínima de uma imagem digital. = PONTO “píxel”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2023, https://dicionario.priberam.org/p%C3%ADxel.
[2]Conjunto geométrico ou objeto natural cujas partes têm a mesma estrutura (irregular e fragmentada) que o todo, mas a escalas diferentes. “fractal”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2023, https://dicionario.priberam.org/fractal.
Contextualização e interdisciplinaridade
A nossa percepção sobre o mundo é influenciada pelas nossas referências acumuladas ao longo da vida. A nossa visão, geralmente, busca identificar elementos que fazem parte do nosso repertório e que estejam de acordo com as nossas visões de mundo.
Nesse sentido, ampliar o nosso repertório é um processo educacional que devemos estimular ao longo da vida.
Ele permitirá que aprendamos de diferentes maneiras e auxiliará na compreensão da relação entre os elementos, com o reconhecimento e a reprodução de padrões, a evolução histórica do conhecimento, a interdependência entre eles, e tudo o que nos leva a entender que a dicotomia
entre teoria e prática é uma questão referente à linguagem e, muitas vezes, ocasionada pela falta de contextualização com referências que fazem parte do repertório do público.
O uso dos fractais, por exemplo, permite entender as propriedades e descrever a complexidade de uma estrutura, indicando a relação entre Matemática, Língua Portuguesa, Ciências, Arte, Geografia e História, ao mostrar a reprodução de padrões em diferentes aspectos do universo.
Eles estão presentes na natureza, em formações de nuvens, no relevo montanhoso, na formação de rios, nos ramos e raízes de árvores ou nos vasos sanguíneos, como podemos ver na figura abaixo.
Além disso, os fractais estão presentes para fins tecnológicos, como antenas de celulares ou em criptografias de segurança, e na arquitetura de edifícios, como a Sagrada Família de Barcelona ou a Ópera de Sydney.
Todos esses exemplos apresentam fractais em suas formas e estruturas, não sendo elementos meramente estéticos, mas também de eficiência, além de ajudar a explicar a organização do mundo em que vivemos.
Em outras palavras, a contextualização permite demonstrar de maneira mais factível a relação do conhecimento com outras áreas, e potencializa a criação de novas conexões, com elementos que podemos observar em nosso dia a dia. Tal contextualização pode, inclusive, ajudar a desmistificar que o ensino de determinados assuntos nas escolas não faz sentido.
Contextualização matemática: história, curiosidades e contribuições
Ao longo da história, diversos pensadores realizaram contribuições que permitiram a humanidade evoluir social, econômica e tecnologicamente.
Para entender alguns conceitos que usamos atualmente na matemática, muitas vezes, a contextualização sobre o seu surgimento, permite ao estudante vislumbrar uma aplicação prática que facilita o processo de ensino e de aprendizagem.
Por exemplo, você pode ressaltar a importância de Tales de Mileto ao mostrar a relevância dos triângulos para a construção de casas, pontes, porteiras, de modo que o estudante possa vivenciar uma experiência que permita assimilar significativamente o assunto.
Dessa maneira, o estudante terá a oportunidade de testar na prática como a forma geométrica fornece segurança e estabilidade a uma estrutura, evitando que elas fiquem instáveis e oscilantes.
Outras possibilidades de contextualização poderiam envolver a estética, com forma e simetria, e a beleza da arte com as contribuições do filósofo grego Euclides, ou resultados de pesquisas de opinião para explorar as probabilidades e as contribuições do francês Blaise Pascal, ou mostrar como a sequência proposta por Leonardo Fibonacci está presente em diversas manifestações como flores de girassóis, reprodução de coelhos, a proporção do baralho de cartas, feixes de tinta de pintores renascentistas, projeções do mercado financeiro e algoritmos de computação.
Explorar as contribuições de pensadores e usá-las para realizar contextualizações práticas podem tornar o processo de ensino e de aprendizagem da matemática mais significativo, ao mostrar que o conhecimento da área é aplicável e está presente no universo de diferentes maneiras.
BNCC: normatização de uma Matemática mais contextualizada
A BNCC estabelece que, no Ensino Fundamental, é preciso preparar o estudante para entender como a Matemática é aplicada em diferentes situações, que extrapolem o universo da escola.
Em outras palavras, é importante que o foco não esteja sobre o cálculo em si, mas nas possibilidades de relações que se estabelece entre os diversos conhecimentos que o estudante já possui.
Nesse sentido, é possível notar a preocupação da BNCC em articular os estudos da área, por exemplo, com a matemática financeira, com os recursos tecnológicos e com a aplicação de pesquisas, divididas em etapas de investigação e coleta, organização e tratamento de dados, e divulgação do resultado ao público de interesse.
Logo, como professores, temos o desafio de mostrar como a matemática se faz presente no cotidiano, sendo essa uma peça fundamental para estimular a aprendizagem e o gosto pela área. Podemos iniciar esse processo, pensando em como podemos explorar as unidades temáticas: Números, Álgebra, Geometria, Grandezas e Medidas, Probabilidade e Estatística.
Diversas situações do cotidiano podem ser usadas em propostas práticas, por exemplo, como:
- elaborar uma receita e, se possível, prepará-la;
- analisar as construções na cidade e propor a construção de maquetes ou ambientes virtuais, como no jogo digital Roblox[1],
- usar os esportes para trabalhar cálculos sobre desempenho, figuras geométricas e reconhecimento de padrões;
- trabalhar com músicas para mostrar a aplicação de frações, escalas e logaritmos que tornam o som mais agudo ou grave (Hertz), entre muitas outras possibilidades.
Essa contextualização também pode contribuir para que os estudantes desenvolvam consciência sobre a gestão de renda familiar, o cálculo de juros e a avaliação de riscos.
É possível estabelecer um mercado virtual em sala de aula, em que os estudantes façam a gestão fictícia de suas finanças, realizem aplicações, trabalhem com promoções, descontos, paguem juros por atraso, entre outros elementos desse universo.
Podemos contextualizar o ensino da álgebra com o planejamento de uma saída de estudo de campo, calculando a distância a ser percorrida, o tempo estimado de viagem e a velocidade média para chegar no destino no horário determinado.
Ou podemos explorar o letramento científico, ao propor reflexões sobre o uso de diferentes formas geométricas (cilindro, tubo, cone etc.), com diversos tamanhos e larguras, e distintas finalidades em experimentos físico-químicos.
Podemos sintetizar toda essa complexidade com a reflexão sobre o uso de panelas, por exemplo (tamanho, profundidade, espessura, tipo de material etc.), e como elas influenciam no resultado final da preparação de uma receita.
É possível também articular os objetos de conhecimento com o mundo digital, com o uso das redes sociais para aplicar a estatística na realização de pesquisas de opinião. E isso envolve os principais problemas do bairro ou sobre o tema de um festival cultural que pode acontecer na escola, por exemplo.
Usando os superpoderes: suporte dos livros didáticos de Matemática – Anos Finais
Saber utilizar os diversos recursos que temos à disposição para ampliar nossas habilidades é um superpoder! Como professores, podemos usufruir das possibilidades de contextualização da matemática e articular os conhecimentos prévios dos estudantes para ajudá-los a desvendar o mundo.
Para nos ajudar nessa missão, podemos contar com a sistematização dos objetos de conhecimentos exigidos pela BNCC e a contextualização promovida por alguns livros didáticos. Por exemplo, há livros disponíveis para a escolha no PNLD 2024 (6° a 9° ano) que auxiliam na abordagem por meio de suas atividades e propostas didáticas.
Teláris Essencial Matemática
Por exemplo, a coleção Teláris Essencial de Matemática, da editora Ática, escrita pelos professores Luis Roberto Dante e Fernando Viana, traz, ao longo dos seus volumes (6° ao 9°), uma série de propostas e atividades que articulam os conteúdos com situações do cotidiano, como nas seções “Abertura de Capítulo”, “Conexões e leitura” e “Para ler, pensar e divertir-se”, por exemplo.
[1] É uma plataforma de jogos MMOSG e Sandbox baseada em mundo aberto, de simulação que permite criar o seu próprio mundo virtual e interagir com outros: https://www.roblox.com/.
Neste exemplo, podemos notar a utilização de referências a situações do dia a dia, ao explorar os terremotos para trabalhar a ideia de decimais (6° ano).
A articulação com Geografia, História e Língua Portuguesa permite ao estudante compreender como funcionam as placas tectônicas, a medição pela escala de Richter e, consequentemente, como os decimais são usados para explicar os fenômenos.
Na seção “Conexões e leituras” são trabalhados diferentes gêneros textuais para ampliar e enriquecer a contextualização da Matemática com outras áreas do conhecimento, além de mostrar algumas das suas possíveis aplicações.
No final de algumas dessas seções, são propostas atividades para os estudantes responderem, propiciando reflexão e interpretação do tema tratado.
Já neste outro exemplo da seção “Abertura de capítulo”, podemos notar o trabalho com a ideia de função (9° ano) ao relacionar o peso pago por quilo da medida de massa de comida, em um restaurante, não considerando a medida de massa do prato.
Ou seja, a contextualização permite que o estudante entenda o conceito e a aplicação da função na matemática, com relação de dependência, variáveis, utilização de gráficos etc.
Essa seção sempre apresenta imagens e textos que procuram contextualizar os assuntos que serão apresentados, relacionando-os a vivências cotidianas.
Matemática e Realidade
Outra coleção que se destaca pelo seu trabalho com a matemática no cotidiano é a obra da editora Saraiva, Matemática e Realidade, escrita pelos autores Gelson Iezzi, Osvaldo Dolce e Antonio Machado.
Ela apresenta uma abordagem aplicada ao dia a dia, que articula os temas relevantes da atualidade com a Matemática. Essas articulações podem ser notadas de maneira mais evidente nas seções “Abertura de Unidade”, “Na História”, “Educação Financeira” e “Na Mídia”, por exemplo.
Nesse exemplo, podemos notar a utilização de referências a situações cotidianas, ao explorar a aplicação do triângulo nos mecanismos de geolocalização.
A contextualização ajuda o estudante a entender o conceito de triangulação e como as formas geométricas são utilizadas para possibilitar a comunicação por antenas e satélites, por meio de ondas.
A seção “Abertura de Unidade” na maioria das vezes, aborda os Temas Contemporâneos Transversais (TCTs) com um viés interdisciplinar para buscar despertar a curiosidade dos estudantes.
Os temas e os conteúdos matemáticos da unidade são relacionados por atividades contextualizadas na própria abertura e em outros momentos ao longo dos capítulos correspondentes.
Nesses exemplos, podemos notar a articulação do cálculo de despesas familiares (7° ano) para trabalhar operações de adição, subtração, multiplicação, divisão, porcentagem e média, o que contribui para a consciência sobre o consumo e incentiva uma reflexão sobre a cidadania.
A seção “Educação Financeira” objetiva que cada estudante reflita sobre a sua realidade e utilize a Matemática como instrumento para melhorar a qualidade de vida – sua e da família. Ou seja, a proposta é preparar o estudante para a vida, ao trabalhar alguns princípios do planejamento financeiro.
Podemos notar também como trabalhar com temas relacionados à sustentabilidade, com números relativos à coleta seletiva no país (8° ano), auxiliando no desenvolvimento de conhecimentos relacionados à porcentagem, à leitura de gráficos e a projeções futuras.
A seção “Na Mídia” articula conhecimentos matemáticos com textos de notícias e artigos publicados em jornais, revistas ou sites, buscando incentivar a análise crítica da realidade ao comparar os dados e as situações apresentadas.
Além disso, podemos utilizar fatos e personagens históricos que contribuíram para a construção do conhecimento (9° ano) com a contextualização sobre Cardano e Pascal, associados a jogos de azar (cartas, dados, moedas e figurinhas) para trabalhar com o conceito e colocar em prática a noção de probabilidade.
A seção “Na História” explora as descobertas científicas e históricas dos conteúdos matemáticos ligados a assuntos tratados na unidade.
É útil especialmente para levar os estudantes a perceber que o conhecimento está em construção ao longo dos séculos, por diferentes pessoas, contínua e colaborativamente, portanto não é algo que se acaba, podemos reformular de acordo com as novas descobertas, o que exige das pessoas envolvidas nos estudos muita dedicação e empenho.
Jornadas Novos Caminhos
A aplicação da matemática no cotidiano está em destaque na obra Jornadas Novos Caminhos, da editora Saraiva.
Nela apresentamos propostas de aplicações práticas com a seção “Em ação”, infográficos que abordam um conjunto de conhecimento articulado com outras áreas e propostas que evidenciam a presença da matemática no dia a dia, com a seção “Matemática em destaque”.
Nesse exemplo, podemos notar o trabalho com números positivos e negativos, leitura de gráficos e reta numérica. A articulação com o componente curricular de Ciências, Arte e Língua Portuguesa ajudam o estudante a notar como o conhecimento é integrado e interdependente.
A contextualização abordada nas atividades da seção “Matemática em destaque” privilegia tanto o desenvolvimento da competência leitora quanto a percepção de que a Matemática está presente em diversas situações da vida do estudante.
Já neste exemplo, podemos notar que a contextualização sobre densidade demográfica e concentração populacional ajuda a trabalhar com conhecimentos relacionados à medida de área, leitura de gráficos, estatística e probabilidade.
Essa articulação com os componentes curriculares de Geografia, História, Língua Portuguesa e Arte ajudam o estudante a assimilar informações importantes para a sua atuação no mundo.
Essa seção “Infográficos” apresenta, de maneira dinâmica, alguns dos temas relacionados à unidade. O seu objetivo é instigar o estudante a refletir e a avaliar, de maneira crítica, as informações veiculadas diariamente.
Conectando os pontos
Como você pode notar, há diversas maneiras de se trabalhar a matemática de maneira articulada com situações cotidianas. Essa contextualização permitirá ao estudante relacionar a aplicações de fórmulas e a realização de cálculos a situações que vivencia, tornado o processo de aprendizagem mais significativo.
Como professores, precisamos reforçar que a matemática é um poderoso recurso de interpretação do universo e que é onipresente em nossas vidas! Se conseguirmos ampliar a visão do estudante e mostrar como ela se faz presente em diversas áreas, como negócios, ciências, arte, tecnologia e até mesmo nas decisões diárias, conseguiremos ampliar o seu interesse pela área.