Oralidade letrada na sala de aula: que gêneros ensinar?
A centralidade do texto na aula de Língua Portuguesa já é um consenso.
Desde a publicação da obra “O texto na sala de aula: leitura & produção” (GERALDI, 1984), pesquisas e práticas têm mostrado a importância de ter o texto como ponto de partida e de chegada da aula de Português, bem como a necessidade de ensinar os diversos gêneros que circulam socialmente.
Quer saber mais sobre oralidade letrada na sala de aula?
Então, confira o conteúdo sobre o tema!
A importância da oralidade letrada na sala de aula
A importância do trabalho com o texto na sala de aula mantém-se em evidência na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que indica, nas Competências Específicas de Língua Portuguesa para o Ensino Fundamental.
Os estudantes devem “Ler, escutar e produzir textos orais, escritos e multissemióticos que circulam em diferentes campos de atuação e mídias, com compreensão, autonomia, fluência e criticidade, de modo a se expressar e partilhar informações, experiências, ideias e sentimentos, e continuar aprendendo” (BRASIL, 2018, p. 79-80).
Levando em consideração especificamente o trabalho com textos orais, é preciso que o professor realize diferentes práticas a fim de ajudar o estudante a desenvolver essa competência, conforme orienta o documento:
- considerar as condições de produção dos textos orais que regem a circulação de diferentes gêneros nas diferentes mídias e campos de atividade humana e refletir sobre elas;
- compreender e produzir textos orais;
- compreender os efeitos de sentidos provocados pelos usos de recursos linguísticos e multissemióticos em textos pertencentes a gêneros diversos;
- refletir sobre a relação entre fala e escrita.
Nessas práticas, é preciso também considerar os vários campos de atuação, como reforça a BNCC, e investir no trabalho com gêneros da oralidade letrada.
Mas que gêneros são esses?
Gêneros da oralidade letrada: quais são e como abordá-los em sala de aula?
Nos anos finais do Ensino Fundamental, os estudantes participam com maior criticidade de situações orais de interação mais diversas, o que demanda deles mais conhecimentos sobre gêneros orais formais públicos, também chamados de gêneros da oralidade letrada (PERNAMBUCO, 2012).
Ou seja, aqueles mais formais, apoiados na escrita, como os textos jornalísticos orais, a apresentação oral, a entrevista oral, o seminário, o debate regrado, entre outros.
Por serem mais complexos, esses gêneros devem ter espaço de destaque nas práticas de ensino da oralidade na escola.
Para tanto, é necessário, conforme destaca Schneuwly (2004), que o professor trabalhe com estruturas igualmente complexas, que favoreçam uma reflexão mais aprofundada, por parte dos alunos, sobre aspectos da estrutura do gênero e da própria língua, bem como sobre aspectos sócio-discursivos relacionados a esses diversificados contextos de interação.
Tomemos como exemplo a seguinte situação: na sala de aula de uma turma do 9º ano do Ensino Fundamental, surge uma discussão acalorada a respeito do uso do “vape”, cigarro eletrônico que tem despertado preocupação em pais e profissionais de saúde e curiosidade nos jovens.
Diante da relevância do tema e do interesse dos estudantes, o professor pode sugerir pesquisas, trazer textos de diferentes gêneros para leitura e discussão em classe, como reportagens escritas e televisionadas, gráficos e tabelas com dados de pesquisas, artigos de opinião e de divulgação científica, entrevistas com especialistas etc., de modo que os alunos conheçam o tema sob diferentes pontos de vista e reconheçam os argumentos que sustentam cada um deles.
Considerando que, segundo dados do IBGE, dois em cada dez brasileiros de 16 a 17 anos já usaram o cigarro eletrônico, mesmo tendo sido proibido pela Anvisa desde 2009, seria interessante, após esse primeiro momento de apropriação da temática e de construção de pontos de vista, o professor propor um debate regrado com a turma sobre o tema, de modo a levantar questões e reunir argumentos sobre os malefícios que esse dispositivo pode causar e, ao mesmo tempo, sobre o que leva os jovens a consumi-lo.
O debate regrado é um importante gênero da oralidade letrada a ser ensinado e aprendido na escola.
Para tanto, é necessário que o docente ensine o gênero oral debate regrado considerando elementos como composição, conteúdo temático e estilo e função comunicativa, bem como outros aspectos do contexto de produção.
Começando por este último, é importante deixar claro que o debate é uma forma democrática de discutir temas que dividem opiniões, as quais podem ser sustentadas a partir de argumentos.
Assim, o objetivo do debate é, justamente, permitir que os diferentes modos de compreender um assunto sejam postos em questão de forma fundamentada, democrática e respeitosa.
Neste momento, os estudantes podem assistir a alguns debates televisionados a fim de perceber, de um modo mais geral, como se dá seu funcionamento.
Sobre a forma e os modos de dizer desse gênero oral, o professor pode explicar que há debates mais informais, como os que travamos no dia a dia com pessoas do nosso convívio sobre temas mais conhecidos e que, ainda que exijam argumentos, não carecem tanto de planejamento.
No entanto, deve destacar que o debate regrado a ser realizado em classe é formal e público, o que demanda estudo, pesquisa, planejamento, produção e mediação.
Neste momento, além de explicar as etapas do debate, o professor precisará também esclarecer qual é a função do mediador, destacando que é ele que determinará a sequência de falas, cronometrará o tempo de cada um dos participantes, cuidará para que todos participem ordenadamente e para que os turnos de fala sejam respeitados.
No momento de planejamento do debate, o professor deve pedir que a turma se organize em dois grupos, de acordo com a opinião que possuem a respeito do uso do cigarro eletrônico.
Deve também escolher, junto com os alunos, quem será o mediador (que pode ser ele próprio).
Cada equipe deverá reunir textos, dados, estudos etc. para, a partir daí, construir os argumentos que sustentarão seu ponto de vista, considerando também os argumentos que o outro grupo pode usar para, assim, construir seus contra-argumentos.
O professor deve reforçar a necessidade de esses argumentos serem bem construídos, uma vez que são elementos persuasivos que podem modificar o ponto de vista do interlocutor.
Aqui, o docente pode também refletir sobre argumentação com a turma, de modo que os alunos possam lançar mão de diferentes recursos argumentativos para encadear, de forma coesa e coerente, sua discussão.
Ainda sobre a composição, o professor pode criar com os estudantes as regras, já que se trata de um debate regrado. Essas regras devem garantir:
No que se refere mais especificamente ao trabalho com o oral, o professor pode explorar os aspectos linguístico-expressivos do debate regrado, como a variedade linguística empregada e os efeitos de sentido decorrentes de escolhas de elementos como entonação, pausas etc. e de suas relações com o texto verbal.
Pode, ainda, refletir sobre a necessidade de falar em um tom alto (para que todos escutem), porém amigável, cortês e polido, e sobre o efeito dessas escolhas têm em termos também argumentativos sobre o interlocutor.
Além desses aspectos, é preciso que o professor reflita com a turma sobre a necessidade de não desqualificar o colega debatedor durante as discordâncias; de compreender que o debate ajuda as pessoas a se constituírem enquanto cidadãs, uma vez que oportuniza trocas e vivências de opiniões diferentes; e de entender que não há vencedores ou perdedores em um debate, mas que há sempre conquistas importantes quando as discussões são conduzidas de forma democrática.
Ao final, o professor deve avaliar o debate junto com a turma, considerando critérios previamente informados para avaliação do gênero, bem como se foi produtivo, se os argumentos foram colocados de forma convincente e quais foram os aprendizados construídos sobretudo em termos de uso da fala pública.
Continue refletindo!
Como é possível observar, o exemplo de produção do gênero oral debate regrado a partir das discussões geradas em classe sobre o uso do cigarro eletrônico representa bem como como os gêneros são fenômenos históricos profundamente vinculados à vida cultural e social (MARCUSCHI, 2002) e devem ser trabalhados na escola de modo a atender essas necessidades socioculturais.
Além disso, o exemplo aponta para a importância do ensino sistemático de gêneros da oralidade letrada a partir de atividades que explorem seus diversos elementos, como composição, conteúdo temático e estilo e função comunicativa, já que, como destaca Machado (2009), realizar atividades escolares sistemáticas é importante para o desenvolvimento da aprendizagem dos alunos.
Só assim, explorando gêneros orais formais públicos na escola, estaremos, como diz Marcuschi, não somente ensinando os alunos a falarem, mas a refletirem sobre o que se faz quando se fala.
Referências
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular – BNCC. Brasília, DF, 2018.
GERALDI, João Wanderley (Org.). O texto na sala de aula: leitura & produção. Cascavel: Assoeste, 1984.
MACHADO, A. R. Linguagem e educação: o ensino e aprendizagem de gêneros textuais. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2009.
MARCUSCHI, L. A. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONÍSIO, A. P. MACHADO, A. R.; BEZERRA, M. A. (Orgs.). Gêneros textuais e ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002. p. 19-36.
PERNAMBUCO, Secretaria de Educação. Parâmetros Curriculares de Língua Portuguesa para o Ensino Fundamental e Médio. Recife: SE, 2012.
SCHNEUWLY, B. Palavra e ficcionalização: um caminho para o ensino da linguagem oral. In: SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. et al. Gêneros orais e escritos na escola. São Paulo: Mercado das Letras, 2004, p. 109-124.
Gostou de saber mais sobre a oralidade letrada na sala de aula? Então, confira nosso conteúdo sobre Habilidades de Leitura e o Ensino da Língua Portuguesa!
Hérica Karina Cavalcanti de Lima é Doutora em Educação (UFPE), na linha de pesquisa Educação e Linguagem, com período sanduíche no Laboratório de Investigação em Ensino de Português (LEIP), da Universidade de Aveiro/Portugal. É também Mestre em Educação (UFPE), na linha de pesquisa didática de conteúdos específicos, Especialista em Língua Portuguesa e licenciada em Letras (UPE). Atua como professora adjunta do Departamento de Letras da UFRPE e como docente colaboradora do Mestrado Profissional em Letras da UFPE. Realiza pesquisas e trabalhos nas áreas de ensino de língua materna, metodologias de ensino, formação de professores e materiais didáticos de português.