“Professor, esse corpo não é o meu!”: reflexões sobre identidade de gênero e corporiedades nas escolas

As escolas são espaços fundamentais para a valorização e o respeito à pluralidade cultural e identitária, especialmente no contexto de gênero e sexualidade. Estudantes de diferentes famílias, raças, com bases religiosas distintas, identidades de gênero e orientação sexual variadas compartilham experiências e aprendizados de forma coletiva, tornando a convivência uma oportunidade ímpar para o crescimento individual e coletivo. A vivência escolar dentro dessa pluralidade abre espaço rico para um potente trabalho sobre respeito, inclusão e empatia.
É essencial que os currículos escolares reflitam essa diversidade, incluindo conteúdos que valorizem as várias culturas, histórias e a diversidade de gênero e sexualidade, além das diversas formas de expressão dos corpos. Políticas claras contra a discriminação e a promoção de um ambiente acolhedor são vitais para que todos/as se sintam seguros/as, respeitados/as e incluídos/as.
A Importância de Refletir sobre identidades de gênero nas Escolas
O que você faria se um/uma estudante trans, por exemplo, te abordasse, em plena sala de aula, com a seguinte pergunta: “Professor, esse corpo não é o meu”? Muito provavelmente, essa indagação geraria desconforto ou dificuldade para dar contorno de forma responsável e respeitosa com a estudante. Convido você, ao longo desse texto, a pensar um pouco sobre isso e iniciar, dentro do seu espaço escolar, o aprofundamento de reflexões e práticas que respeitem as individualidades dentro da pluralidade. É claro que aqui não será possível abordar toda a dimensão dessa reflexão, mas deixará o convite para aprofundamentos teórico-práticos e formativos.
“Trans-bordando” Reflexões sobre os Corpos e Gênero e Sexualidade
Determinados espaços do currículo escolar se debruçam em estudos relacionados à compreensão do corpo. Na perspectiva do ensino de Ciências e Biologia, o corpo é apresentado como uma coleção de órgãos e sistemas que desempenham funções específicas e que, de forma coordenada, orquestram um sistema orgânico que nos sustenta enquanto seres humanos. Desequilíbrios orgânicos, doenças infectocontagiosas e a relação com aspectos de nutrição também são abordados e possuem a sua importância. Porém, será que a abordagem, quando apresentamos imagens representativas dos corpos, tomamos o cuidado para contemplar a diversidade de gênero e sexualidade existente? Alguma reflexão sobre corpos de pessoas trans é abordada? Quase sempre, para fugir de situações delicadas e que colocariam docentes diante de um grande desafio, os debates sobre essa diversidade ficam mascarados dentro da perspectiva biologizante do estudo do corpo.
Já em Educação Física, que faz parte da área de conhecimento de Linguagens, o corpo é visto como o principal instrumento de aprendizado e expressão. As atividades físicas ensinadas e praticadas têm como objetivo não apenas melhorar a aptidão física e as habilidades motoras, mas também promover a saúde e o bem-estar geral dos/as alunos/as. Através desse contexto, os/as estudantes aprendem sobre o funcionamento do corpo, a importância do exercício, e são estimulados a desenvolverem uma relação positiva com a atividade física. Além disso, a educação física moderna busca ser inclusiva, adaptando-se para acomodar e valorizar diferentes tipos de corpos e habilidades, enfatizando que todos/as têm o direito de participar e se beneficiar das atividades físicas, independentemente de suas capacidades individuais.
Já em outros âmbitos, como no estudo de arte, esse corpo transcende as definições anteriores, adquirindo significados culturais e políticos profundos em nossa sociedade, e entende o corpo como um veículo de expressão individual e um campo de batalha para disputas sociais e políticas. A forma como os corpos são percebidos, regulados e representados reflete e molda as normas culturais e as estruturas de poder vigentes.
O corpo como campo de batalha para as questões de gênero e sexualidade
Culturalmente, o corpo é um texto sobre o qual a sociedade escreve suas normas e expectativas. Através da moda, da linguagem corporal e das práticas estéticas, os indivíduos comunicam suas identidades, valores e pertencimento. Cada cultura possui seus próprios códigos que definem o ideal de beleza, a adequação do comportamento e a expressão de gênero, influenciando profundamente a autoestima e a interação social de cada indivíduo.
Politicamente, o corpo é frequentemente o epicentro de políticas de controle e resistência. As legislações sobre questões como aborto, direitos trans, vestimenta e comportamento público demonstram como o controle dos corpos é central para a manutenção de poder. Ao mesmo tempo, movimentos sociais utilizam o corpo como forma de resistência e afirmação de identidade, desafiando normas opressivas e reivindicando direitos e reconhecimento.
As intersecções de raça, gênero e classe também são cruciais na compreensão do corpo cultural e político. Corpos racializados e marginalizados enfrentam camadas adicionais de discriminação e estereotipação, onde práticas discriminatórias são frequentemente justificadas sob premissas culturais ou biológicas falaciosas. A luta contra essas opressões é também uma luta pelo direito de existir e ser reconhecido na plenitude de sua humanidade.
Assim, entender o corpo como uma entidade cultural e política é fundamental para desvendar as complexas dinâmicas de poder que moldam as sociedades. É um exercício de conscientização que convoca cada um a refletir sobre como as normas sociais influenciam a percepção e o tratamento dos corpos, e como esses, por sua vez, podem ser espaços de transformação e emancipação.

Fonte: Fotografia do autor, 2025.
Como podemos ir além e respeitar todos e todas dentro do espaço escolar?
Os espaços escolares, embora sejam locais de aprendizado e desenvolvimento humano, podem também reproduzir e perpetuar violências, especialmente ao engessar os debates sobre o corpo. Essas violências manifestam-se de diversas maneiras, muitas vezes sutis e enraizadas nas práticas e políticas institucionais, sendo elas:
1) Por meio de um currículo limitado: os currículos escolares tradicionais, muitas vezes, não abordam questões relacionadas ao corpo de maneira abrangente ou crítica. Temas como diversidade de gênero, orientação sexual e padrões de beleza são, frequentemente, excluídos ou tratados superficialmente, deixando de fornecer aos/às alunos/as uma compreensão completa e respeitosa das variadas expressões corporais e identidades.
2) Normas de vestimenta: as políticas de vestimenta podem ser uma fonte de discriminação e marginalização, impondo padrões que, muitas vezes, refletem e reforçam normas de gênero tradicionais. Alunos e alunas que não se “enquadram” nos padrões de vestimenta baseada no binarismo “masculino-feminino ou menino-menina”, expressando sua identidade de gênero de maneira não tradicional, podem enfrentar punições, exclusões e silenciamentos, gerando impacto emocionais com efeitos profundamente negativos sobre a saúde mental, incluindo sentimentos de ansiedade, depressão e baixa autoestima.
3) Educação física e esportes: as aulas de Educação Física e as atividades esportivas são frequentemente estruturadas de maneira rígida, divididas por gênero e baseadas em expectativas tradicionais de performance e comportamento físico. Isso pode marginalizar alunos/as que não se encaixam nesses moldes, além de perpetuar estereótipos de gênero. É necessário um olhar cuidadoso e que oportunize uma ampliação das práticas didático-pedagógicas dentro desse campo.
4) Discursos e linguagem: o modo como profissionais da educação e da administração escolar falam sobre e tratam os corpos dos/as alunos/as pode reforçar estigmas e preconceitos. Comentários sobre peso, aparência e adequação ao/s gênero/s podem criar um ambiente hostil e pouco acolhedor para os/as estudantes que se “desviam” das normas aceitas. É necessário e urgente oportunizar formação sobre corpo, gênero e sexualidades com professores/as, profissionais técnico-administrativos/as, equipe de profissionais da limpeza, cantina/a, portaria, dentre outros/as.
5) Falta de espaços de discussão aberta: a ausência de fóruns seguros e inclusivos para discussão de questões relacionadas ao corpo pode limitar a capacidade dos/as alunos/as de explorar e entender suas próprias identidades corporais e de seus colegas. Isso reduz as oportunidades para desafiar preconceitos e ampliar a conscientização sobre questões de corpo e identidade. Criar espaços no currículo escolar para que essas práticas pedagógicas ocorram é fundamental para avançar dentro do respeito às diversidades.
6) Bullying e assédio: a falta de políticas eficazes contra bullying e assédio relacionados ao corpo pode levar à perpetuação dessas violências dentro do espaço escolar. Alunos/as que são percebidos como diferentes por qualquer motivo relacionado ao corpo podem se tornar alvos frequentes de bullying. Um trabalho com as famílias também é importante e fundamental, uma vez que pais, mães e demais familiares também fazem parte da comunidade escolar e certamente precisam ampliar o olhar para/sobre corpos e diversidades.
Conclusão
Para que as escolas sejam verdadeiramente espaços de respeito e inclusão, é crucial que os/as educadores e gestores/as escolares se comprometam com a transformação dos currículos e das práticas pedagógicas. Isso envolve uma reavaliação contínua de como os conteúdos são ensinados e a maneira pela qual as políticas escolares são implementadas para garantir que abordem adequadamente a diversidade de corpos, identidades de gênero e sexualidade.
Além disso, é fundamental criar ambientes escolares que não apenas evitem o ostracismo e a discriminação, mas que, ativamente, promovam a aceitação e a valorização das diferenças, especialmente, no contexto atual de fortalecimento das correntes conservadoras e negacionista das diversidades.
Iniciativas como formações continuadas sobre diversidade de gênero e sexualidades, políticas claras de não discriminação e a criação de espaços seguros de discussão podem ajudar a construir uma comunidade escolar onde todos/as se sintam considerados/as, respeitados/as e verdadeiramente incluídos/as. Esses esforços, combinados com um diálogo aberto e constante sobre as realidades e desafios enfrentados por pessoas marginalizadas, são essenciais para que a educação cumpra seu papel de agente transformador na sociedade.
Referências
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Minibio
Danilo Carvalho possui graduação em Licenciatura Plena pela Universidade Federal de Mato Grosso, Mestrado e Doutorado em Biologia Animal pela Universidade Federal de Pernambuco e pós-doutorado pela Texas A&M University (Estados Unidos). É professor e pesquisador da Universidade Federal de Pernambuco, atuando no Colégio de Aplicação da UFPE e no Mestrado Profissional em Ensino de Biologia/CAV-UFPE. Desenvolve atividades direcionadas para o campo do Ensino e Pesquisa em Biologia e acumula experiências na Formação de Professores, Consultoria Educacional, Coordenação Escolar, Acadêmica, Estágio e Direção Escolar. É revisor de periódicos científicos, escritor de artigos e demais textos de divulgação científica.