“A culpa é do professor!”: a necessária atenção a todos os atores do processo educacional
“Feliz dia do professor”. Data linda, em que vemos se proliferarem propagandas com mensagens tocantes, cenas bem dirigidas, partindo de empresas, de entidades do governo, de emissoras de TV, do público em geral. Mas, e no resto do ano? Além das belas mensagens no mês de outubro, existe esse apoio ao docente por parte de todos esses entes?
Sabemos que a luta do professor é diária e que, mais do que felicitações em um dia específico do ano, o que mais queremos é que haja reconhecimento e investimento para que possamos ter melhores condições de trabalho.
Durante muito tempo, há uma romantização da profissão, como se tivéssemos um “dom” e que, por isso, aceitássemos passar por condições tão difíceis no dia a dia, já que “nascemos para isso”.
Essa ideia é bastante interessante para os que pretendem subvalorizar nossa profissão, pois os “escolhidos” jamais abandonariam o trabalho para o qual nasceram. Assim, vão sendo precarizadas a infraestrutura, a formação, a remuneração…
A criatividade do professor posta à prova
Muito se fala também por aí em como o professor pode e deve ser criativo, abordando de maneira inovadora diversos temas e fazendo com que os alunos tenham mais interesse nas aulas etc.
Muitas vezes, como professores, acabamos nos sentindo como naqueles memes de Expectativa versus realidade:
Parecem situações hipotéticas, não é? Mas cada uma delas já aconteceu comigo, em diferentes momentos da minha vida em sala de aula, que já dura 18 anos. Acredito que alguns de vocês já tenham passado por casos parecidos, que, muitas vezes, trazem desânimo, ainda mais depois de tanta dedicação de nossa parte.
Mas, qual a minha intenção ao relatar esses casos? É desanimá-los ainda mais, dizendo que nada do que fazemos adianta? Não, muito pelo contrário. Quero mostrar que, na grande maioria das vezes, não depende apenas de nós, professores, o bom andamento das aulas, como o senso comum costuma acreditar.
Além desses relatados, são diversos os problemas enfrentados. De acordo com a experiência que tenho, tanto prática quanto teórica, acredito que a solução para quase todos eles dependam de uma ação conjunta, que mobilize professores, coordenadores, diretores, orientadores, a comunidade escolar como um todo.
Nas situações exemplificadas, por mais que eu, como professor, tivesse uma preparação e uma disposição para proporcionar uma aula inovadora, houve diversos obstáculos que atrapalhavam esse bom andamento.
Como numa engrenagem, se apenas uma peça funciona bem, sem ajustar o restante da máquina, a fábrica tende a falhar.
Tá, eu sei que a metáfora da máquina não é muito boa, ainda mais quando lidamos com pessoas e defendemos uma educação que se pretende emancipatória, em vez de uma produção seriada de pacotes iguais. Porém, serve para ilustrar a necessidade de uma reestruturação completa do sistema. Se a equipe não está em harmonia, fica muito difícil chegar a uma boa educação aos alunos.
A culpa é mesmo do professor?
Mas, claro, é importante salientar, ainda, que a culpa não é do professor, mas também não é exclusivamente de um desses atores listados.
- Se o gestor do orçamento não proporcionar oportunidades para que a infraestrutura da instituição melhore;
- não permitir que os funcionários se mantenham atualizados (com formação em horário de trabalho);
- não proporcionar momentos para que sejam feitas reuniões constantes para intermediar interesses dos familiares dos alunos (no caso das escolas) com os da instituição, a fim de esclarecer o seu projeto político pedagógico;
- por mais que as “peças” estejam prontas para funcionar bem, a máquina tende a parar por falta de gasto com manutenção…
Feliz dia do professor: Conflito geracional
Outro fato que acaba por aumentar ruídos de comunicação dentro da escola são as diferentes expectativas sobre a educação, muitas vezes causadas pelo conflito geracional que se estabelece nas relações entre os diversos atores do processo educacional.
Geralmente, alunos entram em sala com uma expectativa de que suas aulas sejam oferecidas de maneira diversa da que seus pais tiveram. Já, estes, muitas vezes, esperam que o ensino de seus filhos seja o mesmo que tiveram em sua época de escola, já que “aquilo que era ensino bom”.
Ainda temos professores de diversas gerações, com estilos diferentes de aula, muitas vezes sem uma orientação de profissionais como coordenadores, orientadores e outros que possam determinar uma diretriz que respeite os diferentes estilos e dê um norte comum a todos que participam daquele processo.
Ou seja, cada qual, por conta da sua geração e de seus costumes, além da formação, tem um diferente entendimento sobre o que é o processo pedagógico, o que traz muitos problemas dentro de uma mesma instituição.
Público versus privado
Outro ponto do qual não podemos nos esquecer é a diferença que existe entre instituições públicas e privadas de ensino.
Muitas vezes, por termos mais autonomia de trabalho no setor público, conseguimos ser mais subversivos (no sentido de Paulo Freire) e, mesmo com os entraves criados, como os citados nas situações anteriormente relatadas, acabamos conquistando alguns resultados e nos mantendo em nossos empregos.
Porém, quando tratamos de instituições privadas, as pressões externas acabam sendo maiores e, caso não atendamos às “normas” da empresa e tentemos ser subversivos, acabamos nos tornando desempregados. Bastante criativos e ousados, mas desempregados…
Ataques aos professores e ao conhecimento estruturado como um todo
Não podemos nos esquecer de todos os artefatos criados nos últimos anos para condenar os professores como culpados por todo e qualquer tipo de déficit educacional ocorrido no país.
Na verdade, não só em relação a conteúdos, mas a diversas outras pautas que vêm incomodando parte da sociedade.
“Professor tenta corromper os alunos com ideologias”;
“Cada vez é mais difícil achar escolas que só ensinem o conteúdo da disciplina, nada mais”;
“Esses seguidores de Paulo Freire estão acabando com o país”;
“As faculdades são antros de droga e prostituição”
são frases recorrentes, tanto no meio virtual quanto em conversas presenciais.
Por conta desses ataques e de pressões cada vez mais comuns de partes da sociedade, escolas se veem obrigadas a cercear práticas que são extremamente importantes para a formação de alunos, que estão muito além de posturas conteudistas e que não permitem reflexões e questionamentos por parte dos alunos.
A famigerada “escola sem partido” ainda vem trazendo muito empecilhos para a evolução do ensino em nosso país, paralisando e amedrontando profissionais que tentam fazer seu trabalho de maneira mais progressista e emancipatória para os alunos.
Seguimos na mesma toada daquilo que acontece com a Ciência, cada vez mais questionada por teorias conspiratórias. Ou seja, são trabalhos orquestrados com intenções políticas claras de manipulação de informações e de mentes.
O poder da informação
(CHARAUDEAU, 2015, p. 49)
O efeito de verdade está mais para o lado do “acreditar ser verdadeiro” do que para o do “ser verdadeiro”. Surge da subjetividade do sujeito em relação com o mundo, criando uma adesão ao que pode ser julgado verdadeiro pelo fato de que é compartilhável com outras pessoas, e se inscreve nas normas de reconhecimento do mundo. […] O que está em causa aqui não é tanto a busca de uma verdade em si, mas a busca de uma “credibilidade”, isto é, aquilo que determina o “direito à palavra” dos seres que comunicam, e as condições de validade da palavra emitida.
A descentralização da informação nos dias atuais tem, como quase tudo, seu lado bom e seu lado ruim. Ao retirarmos da mídia tradicional e hegemônica o monopólio da informação, damos a oportunidade de canais independentes para que pratiquem novas formas de divulgação de notícias.
Aproveitando-se da grande difusão da internet e de sua capilaridade (hoje, a presença de smartphones é quase obrigatória em todas as famílias brasileiras), muitos canais propagam informações verídicas e necessárias, com um novo ponto de vista (como jornais de comunidades, de empresas menores e independentes etc.), saindo das grandes empresas de comunicação, o que é bom.
Mas também vemos o crescimento do uso político e visando ao lucro a todo custo, sem compromisso com o que chamamos de “verdade” (não entraremos aqui na enorme discussão sobre o que seria a “verdade” de fato).
Percebemos, então, a utilização das novas tecnologias para a manipulação de informações e desvirtuamento e linchamento coletivo de pessoas, profissões, instituições como um todo.
A Ciência e as instituições que com ela trabalham, como a escola e as universidades, por buscarem explicações em fatos, são alvo recorrente desses grupos, que mobilizam suas hordas em busca de uma reformulação do que seria a “verdade”, sempre de acordo com os seus interesses, é claro.
É comum, inclusive, vermos muitos desses propagadores de fakenews emularem sites de portais tradicionais para passarem credibilidade às suas informações.
Essa emulação é um sinal de que, mesmo com toda a fragmentação noticiaria que temos, ainda vemos uma grande força da mídia tradicional, que, sentindo a perda de poder ao longo dos últimos tempos, vem buscando estratégias para ter um maior alcance entre as pessoas.
Onde estão, então, aqueles que desejam um “feliz Dia do Professor”?
Como vimos ao longo do texto, muitos desafios são enfrentados por nós, professores, ao longo de nossa jornada. Será que mensagens bonitas e tocantes como as ilustradas aqui, enaltecendo a importância de nossas profissões, são suficientes para que tenhamos dias felizes em nossa profissão?
Nossos gestores políticos estão preocupados com projetos que melhorem a infraestrutura das instituições de ensino e que permitam a formação continuada de professores, coordenadores, psicólogos, mediadores, diretores, técnicos e todos os demais atores do processo?
Buscam soluções para que situações como as quatro relatadas no texto e as milhares vivenciadas por nós, todos os dias, não ocorram mais ou tenham saídas institucionalizadas?
O que fazem para que professores se dediquem a cada aluno e sejam lembrados por todos depois de adultos, como a propaganda do MEC de 1994?
As grandes empresas de mídia, com seu grande poder de informação, mais do que animações e mensagens de artistas no Dia do Professor, vêm fazendo um papel de divulgação do que realmente acontece no dia a dia dos profissionais nas instituições de ensino?
Ou permanecem dando destaque a “problemas” causados por esses profissionais quando fazem greves reivindicando direitos básicos?
Ou, ainda, continuam nos mostrando como seres “vocacionados à doação ao outro”?
Quantas parcerias tais empresas vêm fazendo com instituições de ensino, públicas e privadas, que nos ajudem na nossa tarefa de ser a “profissão que faz todas as profissões”, valorizados como tal.
Possíveis caminhos
Sabemos, como profissionais dedicados que somos, que não há soluções simples para problemas complexos. Porém, ouso em trazer alguns possíveis caminhos para que tenhamos dias verdadeiramente felizes como professores.
Insistir em reivindicações que busquem, além de mais recursos de infraestrutura, melhorias coletivas de diversas categorias que trabalhem com a educação. Como repetimos ao longo deste texto, não conseguimos individualmente chegar a avanços que mudem a realidade da educação no país.
Não adianta um professor investir em sua formação se os demais não o fazem; nem o diretor se preparar para criar uma instituição revolucionária se os demais não estão preparados para tal (seja intelectual ou fisicamente, já que muitos precisam atuar em múltiplas instituições ao mesmo tempo).
“Ah, Tiago, falar é fácil, mas como conseguir isso?”. Realmente, não é uma tarefa simples transformar as reivindicações em conquistas, mas precisamos, como uma categoria grande que somos, mobilizar toda a comunidade escolar e pressionar órgãos governamentais a desempenharem bem o papel que lhes cabe.
Criar atividades que levem pais, responsáveis e todo o entorno das instituições de ensino a conhecerem o dia a dia das atividades é um bom começo.
Podemos, então, usar o poder das mídias para isso – as mesmas mídias que são utilizadas para desqualificar o professor e propagar fakenews.
- Usar o Dia e o Mês do professor para divulgar as conquistas e dificuldades enfrentadas no dia a dia da profissão;
- catalogar e divulgar materiais autorais;
- buscar na rede parcerias em outras instituições que tenham inquietações parecidas com as nossas;
- participar de grupos de estudo e pesquisa em universidades (hoje em dia há muitos on-line), aproximando a teoria da prática;
- criar redes de parceiros institucionais, públicos e privados.
São muitas as possibilidades que podem partir de ações individuais e se espalhar para coletivas.
Conclusão
Não sejamos ingênuos em achar que qualquer uma dessas ações é simples; sabemos muito bem que não são.
Eu, mesmo, já vivenciei várias dificuldades que me fizeram, em diversos momentos, desanimar, desde que, em minha primeira semana de atuação como professor, em uma escola pública de Ensino Médio, ouvi na Sala dos Professores: “Você está empolgado assim porque está começando… Quero ver quando tiver o nosso tempo de profissão…”.
Quase duas décadas depois, estou aqui, ainda mais empolgado e buscando soluções para proporcionar um ensino de melhor qualidade para a população, para que cada vez mais pessoas possam entender que a educação é o único caminho para que estreitemos abismos sociais e entendamos que não, a culpa não é do professor.
Nem a salvação está nele. Mas, sem esse profissional, bem preparado e bem remunerado, assim como todos os demais que trabalham com educação, não conseguiremos avançar como sociedade.
Referências
CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das mídias. São Paulo: Contexto, 2015.