A evolução da língua portuguesa e a resistência purista de parte da sociedade
A língua portuguesa, como qualquer idioma, é um organismo vivo e em constante transformação. Desde suas raízes no latim vulgar, falado pelas classes populares do Império Romano, o português passou por inúmeras influências e evoluções. Estas mudanças foram moldadas por fatores históricos, sociais, culturais e geográficos, resultando na rica diversidade linguística que observamos hoje. No entanto, essa evolução nem sempre foi bem recebida por todos os segmentos da sociedade.
Ao longo dos séculos, houve uma resistência significativa por parte de grupos puristas, que defendem a preservação das formas mais tradicionais da língua. Esses puristas frequentemente veem as mudanças linguísticas, como a adoção de estrangeirismos ou a simplificação gramatical, como uma ameaça à pureza do idioma e à identidade cultural. Esse conflito entre a evolução natural da língua e a resistência conservadora reflete a complexa dinâmica entre inovação e tradição que caracteriza a história do português. Confira a seguir o artigo do professor sobre a evolução da Língua Portuguesa:
Afinal, como foi a evolução da Língua Portuguesa?
“…a feiçam deles he seerem pardos maneira dauerme lhados de boõs Rostros e boos narizes bem feitos. am dam nuus sem nenhuűa cubertura nem estimam ne nhuűa coussa cobrir nem mostrar suas vergonhas, e estam açerqua disso com tamta jnocemçia como teem em mostrar o Rostro…”.
O que poderiam nos dizer alguns defensores da língua “pura” que vissem esse trecho da carta de Caminha, escrita há mais de quinhentos anos? Seria essa a forma “correta” de nos comunicarmos?
Vivenciamos, tanto na mídia quanto no nosso entorno familiar e escolar, uma enxurrada de críticas quanto ao que se chama de mau uso da língua. “Professores corretores” fazem sucesso nas redes sociais, corrigindo os chamados “erros comuns”, que, segundo eles, ferem a nossa última Flor do Lácio. O problema é que, nesses casos, fala-se sobre o “correto” como se não existissem outras formas de comunicação, igualmente válidas, que variam conforme a situação. Ou seja, querem cobrir “nossas vergonhas” desde o descobrimento.
Pensemos, então, em uma situação hipotética. Um desses cultos e intocáveis donos do saber, jogando futebol (situação bastante hipotética, mesmo…), pede que um de seus companheiros de time lhe dê um passe:
– Por favor, companheiro, passa-me esse objeto esférico que conduzes com os pés!
Obviamente, o jogador não lhe passaria a bola e a sumidade em língua portuguesa logo desistiria do jogo e voltaria para sua cátedra, indignado com aqueles “ignaros praticantes do esporte bretão”.
Seriam tais expressões adequadas para aquela situação de uso da língua? Situações formais exigem linguagem formal; situações informais, linguagem informal. Pode parecer óbvio, mas não é. Ao não deixar claro para os leigos que existem diversas possibilidades de nos comunicarmos, esses professores corretores descartam qualquer forma da língua que não seja a formal, como se milhares de falantes (e escritores) fossem pessoas sem qualificação que nem sequer devem ser levadas em consideração, por isso precisam ser silenciadas. A justificativa, segundo muitos acadêmicos, é a de que precisamos aprender sua modalidade formal, já que a informal todos nós dominamos. Será que é realmente assim?
E mais: em tempos modernos, não podemos deixar de falar do surgimento de mais uma “grande vilã”, que seduz seus cúmplices para destruir a pobre e indefesa língua portuguesa: a linguagem das redes sociais (o que antes se chamava de “internetês”). Professores se armam; alunos correm desesperados. Somos bombardeados por “vcs”, “tbs”, “rs”, memes, figurinhas, que minariam o ensino da língua escrita formal. Seria, então, a melhor solução mostrarmos a nossos alunos toda a riqueza de mais esse recurso de comunicação ou ignorá-lo, como fosse mais um “erro” que não deve ser abordado nas escolas?
Jovens e adultos, de diversas classes sociais, comunicam-se, em grande parte do tempo eficientemente, horas e horas por dia e, quando chegam à sala de aula, seus professores dizem que essa forma de se expressar é errada. Por que não mostrar as variações dentro dessa nova forma de comunicação, aproveitando o fato de as pessoas hoje em dia estarem escrevendo cada vez mais? Qual o efeito de uma figurinha, de um meme, de um emoji? Não estariam os generais da língua distantes demais da linha de frente?
Na comunicação, e na vida, parece-me um exagero pensarmos em correto, incorreto; bom, mau; existem outros tons, outros matizes, e cada situação de vida seleciona a quantidade de cor que usaremos. Seria interessante que os professores corretores se lembrassem de que eles hoje aparecem em telas em 4K high definition (desculpe-me mais uma vez, caro colega letrado. Alta definição, para não destruir o vernáculo) e que todas as suas imperfeições estão à mostra para quem quiser ver.
Muitos devem pensar: “como pode um professor de língua portuguesa defender uma linguagem cheia de erros como esse tal de internetês e toda a forma de falar das pessoas que não são escolarizadas? Ele deveria corrigi-las, não apoiá-las”. Aproveito, então, este espaço na mídia para me solidarizar com os nobres colegas, que prestam um serviço indispensável aos falantes do português. Vejamos algumas curiosidades sobre a língua.
A língua é um músculo localizado na parte de dentro da boca (pelo menos na maior parte do tempo), relacionado ao paladar, e que participa também na formação da maioria dos fonemas da fala. Até aqui, tudo bem, até mesmo “os que praticam a língua informal” sabem disso… A primeira curiosidade da língua é que ela é o único músculo voluntário do corpo humano que não fadiga. Interessante, não?
Outro ponto interessante é que algumas pessoas apresentam dificuldades na fala, por conta de um problema no freio da língua, que, quando curto, impede a adequada formação de alguns fonemas, como /t/, /d/, /l/ e /r/. A solução seria a realização de uma frenectomia, intervenção cirúrgica em que o freio é cortado, liberando a língua para formar os fonemas e as sentenças que desejar. Alguns conservadores são contra tal operação, acreditando que o tal freio deve permanecer, para um maior controle da “doença” do indivíduo. Ah, no caso dos surdos, a língua não é utilizada para a formação desses fonemas, já que a comunicação de muitos deles se dá majoritariamente por meio da Libras. Esses, então, são ignorados por muitos dos “donos da comunicação”.
Nossa língua é dividida em regiões de sensações do paladar: no fundo, sentimos o sabor amargo; nas laterais, o azedo; na frente, o salgado; e, na ponta, o doce. Esse músculo incrível nos permite experimentar os mais diversos sabores no dia a dia e, dependendo do alimento que provamos, utilizamos uma parte específica da língua. O problema acontece quando tentamos captar o sabor salgado com a região que é responsável pelo doce. Não temos sucesso. Mesmo assim, há pessoas que acreditam ser importante utilizar somente uma parte da língua, geralmente a que capta o amargo. Se contrariadas, mostram-se azedas.
Não sou um anarquista, apenas um pesquisador das múltiplas faces da língua, que se cria e se recria, evoluindo, modificando-se. Em séculos de uso, diversas pessoas, de diversas culturas, em diversos contextos, expressam-se por meio da língua portuguesa, que não poderia se conservar a mesma.
Espero, com este texto, ter conseguido assumir minha posição de professor, apresentando algumas curiosidades sobre a língua (vejam, colegas catedráticos, que me importo com vocês). Quanto mais formas de expressão, mais rica é nossa língua, por isso defendo a multiplicidade de entendimentos e de expressões. Cada um tem liberdade para escolher se vai ou não retirar seu freio, para poder (ou não) saborear todos os pratos do menu comunicacional, desde simples arroz com feijão à sofisticada lagosta. Seguimos experimentando. Afinal, a língua nunca se cansa.
Pergunto ainda a vc, leitor (ops), a você, leitor, se minha linguagem seria deveras informal para um artigo que deveria promover um debate pedagógico. Desculpe-me. Sou um professor esportista. Por isso, faço um convite para jogarmos uma partida de futebol no fim de semana. É só vc me pedir: – Toca a bola, pô!
Referências
CARTA-CAMINHA-FOLIO02V.JPG. In: Wikisource, a biblioteca livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2018. Disponível em: <https://pt.wikisource.org/w/index.php?title=P%C3%A1gina:Carta-caminha-folio02v.jpg&oldid=359839>. Acesso em: 29 out. 2023.
Breve resumo do autor
Tiago da Silva Ribeiro é professor do Magistério Superior no Instituto Nacional de Educação de Surdos nas disciplinas de Língua portuguesa e Tecnologias da informação e comunicação. Tem experiência em turmas do Ensino Fundamental e Médio, além de já ter atuado na modalidade on-line como mediador, orientador de trabalhos finais de curso, desenhista educacional, professor-autor e coordenador de curso. Seu Doutorado em Letras é pela PUC-Rio e teve como tema de trabalho o Internetês. É fã tanto do ovo frito quanto do camarão VG grelhado e, por isso, valoriza todas os pratos comunicacionais disponíveis na sociedade.