Como desenvolver a competência leitora no Ensino Fundamental?
Para início de conversa, gostaria de fazer um convite a você que lê estas linhas: que tal começarmos as reflexões a que se propõe este texto sobre a competência leitora a partir da leitura de um desenho?
Gostou da ideia?
Então, vamos trilhar alguns percursos a partir da seguinte produção de Dedé Laurentino!
Tome o tempo que for necessário para lê-lo – talvez, você tenha lembrado de um tique-taque de relógio neste momento!
Leitura realizada?
Então, gostaria de saber: por onde você começou a leitura? Perceba como essa é uma pergunta-chave para entender o possível percurso que foi realizado.
Se você começou pelo título, que a rigor promove um movimento coesivo catafórico, ou seja, anuncia um pouco do assunto a ser abordado adiante, por ativação de conhecimentos prévios, algumas inquietações podem ter surgido: “quem é Carlos?”, “Como assim, ser lego na vida?”.
O diálogo com a imagem central, que é predominante em todo o agrupamento textual, pode ter auxiliado a desvendar essas questões.
Toda construção alude a um conjunto de peças de Lego, a partir das quais toda sorte de formas pode ser produzida. Mas isso ainda não responde às perguntas iniciais. É preciso continuar caminhando quanto à leitura desse texto.
Vai, continua no caminho da leitura!
Se, porventura, você tiver adentrado no texto diretamente pelo conjunto de peças coloridas, por reconhecê-las mais facilmente, pelo apelo visual, entre outros possíveis motivos, é provável que você tenha realizado uma leitura gráfica, em um movimento de vai e vem.
Foi isso mesmo? Se sim, que tal se perguntar o porquê dessa estratégia? O que fez com que você associasse as cores das peças de Lego com as cores correspondentes que aparecem na parte inferior do desenho como um todo?
A esta altura, você deve estar se perguntando: ora, mas não é óbvio que se trata de uma legenda? Não é evidente que cada porção textual relacionada ao quadradinho colorido se refere à respectiva parte “do mapa de legos”? E faço outra, em resposta: será mesmo tão evidente assim?
Se esse foi seu percurso de leitura (não é garantia que tenha sido o mesmo para todos os leitores), isso só foi possível pela mobilização de conhecimentos anteriores, imprescindíveis para adentrar na leitura dessa produção do cartunista Dedé, como é o conhecimento sobre como proceder na leitura de gráficos.
Para realizá-la, é preciso, dentre outros aspectos, desconsiderar a leitura convencional (considerando o ocidente) que requer um movimento de esquerda para direita, de cima para baixo.
É por isso que descartamos a possibilidade de leitura que resultaria em um texto como:” no meio, não me esquecerei, do caminho desse acontecimento; tinha uma na vida de minhas retinas pedras, tão fatigadas que”.
Essa é uma construção completamente agramatical! Pela gramática que internalizamos como sujeitos falantes nativos da língua portuguesa (falada no Brasil), sabemos que ela não faz sentido (a não ser que, em dado contexto, essa construção gere um dado efeito de sentido).
Mas, voltemos ao movimento de associação de cores que a legenda promove. Ao realizar essa estratégia de leitura, chegamos a esta construção:
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.
Opa! Agora, sim, faz sentido. Mais do que isso: quem gosta de poesia, sobretudo a brasileira, deve ter reconhecido que se trata do poema “Tinha uma pedra no meio do Caminho”, de Carlos Drummond de Andrade.
É pela ativação de nosso repertório sociocultural que isso é possível, e um dos caminhos primordiais para construí-lo é por meio da leitura.
Essa identificação é decisiva para, agora, entendermos quem é o “Carlos” do título do desenho. É, portanto, uma alusão ao importante poeta mineiro. Dessa maneira, em um movimento cíclico, que agora volta ao título, podemos tentar responder à segunda inquietação: o que pode significar “ser lego na vida”?
Para tal, é preciso recuperar outro poema de Drummond, chamado “Poema de sete faces”, cuja estrofe inicial é:
“Quando nasci, um anjo torto
Desses que vivem na sombra
Disse: Vai, Carlos, ser gauche na vida”
Resolvemos mais uma peça desse enigma: o título do desenho remete ao último verso dessa estrofe que aqui reproduzo.
No contexto do poema, que é formado por sete estrofes (seriam as “sete faces”), que abordam momentos da vida da voz poética, a primeira estrofe se relaciona ao nascimento do poeta, à infância.
Será que é aí que reside a razão da escolha por peças de lego no texto que estamos lendo? Se sim, em que isso colabora para o sentido do desenho? Para você, o que seria, então, “ser lego na vida”?
Unindo as peças deste lego
A leitora ou o leitor mais atenta(o) pode ter percebido que oscilo ao chamar ora de desenho (que é como o autor o chama) ora de texto a produção de Dedé Laurentino.
Essa variação não é despropositada. Meu objetivo é reforçar a compreensão de que um texto pode ter diversas configurações e que “desenhos” ou “imagens” não facilitam, necessariamente, a leitura.
O processo de leitura é bastante complexo e demanda um intenso e constante trabalho cognitivo.
E essa premissa se complexifica se considerarmos os textos com várias linguagens, como é a tônica das produções textuais mais recentes que congregam texto verbal, som, imagem, movimento etc.
Neste exercício metalinguístico que realizamos até aqui, por exemplo, ficou evidenciada a importância de conceitos como “sociocognição”, “referenciação”, “conhecimentos prévios e partilhados”, “estratégias de leitura”, “coesão e coerência”, “interdisciplinaridade”, “interdiscursividade”, “multimodalidade”, para citar apenas alguns. E tudo isso diz respeito ao desenvolvimento da competência leitora.
Na perspectiva da Base Nacional Comum Curricular, as habilidades necessárias para desenvolver essa competência são construídas por meio da leitura de diversos gêneros textuais, dos diversos campos de atividade humana, primando por uma abordagem que exija, progressivamente ao longo dos anos, processos cognitivos mais complexos.
Assim, as atividades de leitura devem ir “passando de processos de recuperação de informação (identificação, reconhecimento, organização) a processos de compreensão (comparação, distinção, estabelecimento de relações e inferência) e de reflexão sobre o texto (justificação, análise, articulação, apreciação e valorações estéticas, éticas, políticas e ideológicas)” (BNCC, p.75). E é o texto que se constitui como a unidade central do trabalho na área de Linguagens.
Além disso, cabe salientar a suma importância da diversidade cultural neste trabalho, uma vez que é preciso contemplar “o cânone, o marginal, o culto, o popular, a cultura de massa, a cultura das mídias, a cultura digital, as culturas infantis e juvenis, de forma a garantir uma ampliação de repertório e uma interação e trato com o diferente” (BNCC, p. 70).
Tendo tudo isso em vista, é crucial que haja um material didático consistente que contribua para o desenvolvimento desses aspectos. Nos atentaremos mais detidamente para uma excelente opção na seção seguinte.
No meio do caminho, tinha uma obra didática…
Como vimos, para leitura de um texto, mobilizamos conhecimentos construídos na leitura de diversos outros que passaram a constituir nosso repertório sociocultural, fruto de nossas experiências em práticas de linguagem.
No âmbito educacional, essas práticas são mediadas pelo docente, tendo em vista os eixos de Leitura, Produção Textual, Oralidade e Análise linguística/semiótica que, por sua vez, são articulados em consideração de campos de atuação (mais especificamente nos Anos Finais do Ensino Fundamental, são o artístico-literário, o das práticas de estudo e pesquisa, o jornalístico-midiático e o de atuação na vida pública).
Na obra Português: Linguagens, de autoria de William Cereja e Carolina Dias Vianna, que é voltada para estudantes do 6º ao 9º ano do Ensino Fundamental e que está disponível para escolha no âmbito do PNLD 2024, é um ótimo exemplo de promoção desse trabalho. Tomemos como exemplo o primeiro capítulo do 9º ano, intitulado “Mundo em movimento”.
Precedendo o início propriamente dito do capítulo, há uma seção em que uma série de sugestões são realizadas, como a leitura de livros, a indicação de canções e filmes e o convite à visita virtual a uma exposição de museu.
Todas elas dizem respeito à temática que será abordada, que se refere aos deslocamentos humanos e à situação dos refugiados.
Para começar as discussões em torno desse tema, é apresentada a canção “Diáspora”, composta pelo grupo Tribalistas (formado por Arnaldo Antunes, Marisa Monte e Carlinhos Brown), que é disposta em página-dupla e intercalada por fotografias que sensibilizam e ampliam a compreensão sobre o que é abordado na letra.
Além disso, há informações complementares, como as relacionadas aos músicos e ao significado de certos termos e expressões que foram usados na letra.
No estudo do texto, os estudantes são levados a refletir sobre o tema da canção, sobre os efeitos das escolhas linguísticas e sobre as pistas textuais que apontam para intertextos, como é o caso de trechos de poemas de Sousândrade e Castro Alves que ganham gravidade na voz de Arnaldo Antunes, que os recita.
Se a canção for executada em conjunto com a leitura da letra, como é recomendado na obra, outros sentidos também podem ser produzidos e estudados, como os decorrentes do ritmo, do modo como a letra é cantada, da maneira como a música vai se comportando.
Além disso, os estudantes são levados a perceber que a alusão a momentos históricos e bíblicos e a menção aos poemas dos poetas citados não fazem parte da letra em vão.
Por isso, o contexto que levou à produção desses poemas também é recuperado, o que é de extrema importância para a ampliação do repertório e para o aprofundamento da leitura.
O desenvolvimento desses aspectos e o aprofundamento das reflexões vai progredindo com a associação com outros textos.
Em um primeiro momento, há um texto que aborda a crise migratória no mundo atual, trazendo à tona a situação de ucranianos que fogem da guerra entre Ucrânia e Rússia, a política norte-americana ferrenhamente anti-imigração e o contexto do Brasil que recebe diariamente imigrantes da América Latina e da África, principalmente.
Em um segundo momento, a obra traz um trecho do livro “Da minha terra à Terra”, de Sebastião Salgado, em parceria com a jornalista Isabelle Franca.
Nele, o famoso fotógrafo comenta suas viagens enquanto fazia fotos de movimentos migratórios que resultaram no projeto chamado “Êxodo”.
Dessa maneira, os estudantes passam a ter contato com outras linguagens de expressão artística que se relacionam com a temática e ainda são conduzidos à reflexão de como o que é dito por Salgado se relaciona com a canção Diáspora.
Esse relevante trabalho quanto ao eixo de leitura vai se encaminhando para o desenvolvimento das práticas de linguagem no âmbito do eixo de oralidade, uma vez que os estudantes são convidados a promover uma roda de conversa com a participação de uma pessoa a ser entrevistada, o que é feito por meio de várias orientações.
Ademais, todo o trabalho mais voltado para a gramática normativa e todas as atividades que dizem respeito ao eixo de análise linguística e ao eixo de produção textual são realizados, em boa medida, com a recuperação de expressões que já apareceram nos textos estudados e pela consideração de novos textos que reforçam a temática do capítulo, como se observa nas imagens adiante:
(Exemplos de textos que figuram no trabalho voltado para gramática normativa, para análise linguística e para produção textual, respectivamente)
Conclusão nas entrelinhas, nas entreletras
Conforme ficou evidenciado ao longo deste texto, realizamos percursos de leitura que são condicionados aos nossos conhecimentos prévios, frutos de repertórios socioculturais construídos a partir de diversas práticas sociais de linguagem que experienciamos ao longo da vida e que se desenvolvem por meio de gêneros textuais de diferentes configurações, de diferentes esferas do conhecimento.
Tendo isso em vista, é reconfortante poder contar com uma obra, como o Português: Linguagens, que promova um trabalho consistente em prol do desenvolvimento, dentre outros aspectos, da competência leitora que, como foi explanado, é promovida por meio de atividades que articulam os eixos de leitura, de oralidade, de análise linguística/semiótica e de produção textual de maneira satisfatória.
Por fim, encerro estas reflexões trazendo outro texto de Dedé Laurentino, que nos brinda com seu modo de LER nas entrelinhas, de ver para além do que está explicitamente dito. Afinal, como leitores competentes, podemos fazer inferências quanto ao melhor caminho a seguir.
Gostou de saber como desenvolver a competência leitora no Ensino Fundamental? Então, confira nosso conteúdo sobre a escuta ativa como elemento da oralidade!