MENU

Inclusão escolar: como ficam os estudantes com transtornos mentais?

2 de janeiro de 2025
E-docente
Transtornos Mentais

Saiba como abordar a problemática da inclusão escolar de alunos com transtornos mentais no Brasil, destacando a lacuna existente na legislação que ampara esses estudantes. Enquanto a legislação brasileira garante direitos e recursos para alunos com deficiências físicas, intelectuais, autismo e TDAH, os alunos com transtornos mentais, como depressão, ansiedade e transtorno bipolar, frequentemente ficam desassistidos. O artigo discute o impacto desses transtornos no aprendizado, comprometendo funções cognitivas essenciais, e propõe a necessidade urgente de rever as políticas públicas e as práticas pedagógicas para garantir uma educação inclusiva e equitativa para todos, incluindo a implementação de leis específicas e a formação continuada de professores para lidar com essa realidade.

O que são Transtornos Mentais?

Os transtornos mentais (TM) se classificam como alterações do modo de pensar e/ou do humor produzindo prejuízos no desempenho global da pessoa no âmbito pessoal, social, ocupacional e familiar (Santos, 2010). Com outras palavras, os transtornos mentais estão ligados aos quadros diagnósticos que geram sintomas de adoecimento emocional/psiquiátrico e que afetam o comportamento humano. Dentro desses, temos desde os Transtornos Mentais Comuns (que são aqueles que misturam sintomas de ansiedade e depressão e estão ligados, geralmente, ao estresse, e que, como a própria nomenclatura diz, são mais “comuns” na sociedade) até os Transtornos mais complexos (que afetam um número menor de indivíduos, como o Transtorno Afetivo Bipolar, a Esquizofrenia, o Transtorno de Personalidade Borderline, dentre outros).  

O Crescimento dos Transtornos Mentais e o Papel da Escola

Os transtornos mentais têm apresentado crescimento nos últimos anos, causando impactos significativos na saúde, no desempenho acadêmico e no comportamento social, principalmente depois da Pandemia da Covid-19 (Miranda et al, 2020). Por tudo isso, Marques e Romualdo (2014, p.2) afirmam que: “a escola está tensionada a refletir o momento histórico que estamos atravessando, considerando a diversidade como característica do sujeito em processo de constante transformação, a fim de oferecer uma educação para todos”. Nesse sentido, cabe a nós, educadores, discutirmos mais enfaticamente as questões relacionadas a saúde mental no âmbito escolar, mas não somente em relação ao cuidado e a encaminhamentos clínicos (quando nos deparamos com algum aluno adoecido), mas, também, em relação às questões educacionais.  

A Legislação Brasileira e a Lacuna na Inclusão de Alunos com Transtornos Mentais

Não é de hoje que o tema “inclusão escolar” é debatido nas escolas e, mais recentemente, nas universidades. Inúmeros são os documentos que regem as normativas sobre a inclusão da pessoa com deficiência em território nacional, tais como: Lei nº 7.853/198991; LDB 9.39410; Lei 12.764/2012132; Lei 13.146/2015143; Lei 14.2544. No entanto, todos esses documentos deixam brecha para questionamentos, uma vez que são direcionados, somente, aos direitos das pessoas com deficiências (física, auditiva, visual e intelectual), autismo5 e TDAH6 (Martins, 2024).  

Então, aqui cabe a pergunta: se as Leis só garantem acessibilidade aos estudantes com deficiências, autismo e TDAH, como fica o processo pedagógico daqueles com transtornos mentais que estão em nossas salas de aulas? A resposta é simples: na maioria das vezes “fica ao Deus dará” – isto é, legalmente falando, essas pessoas ficam no limbo quando o assunto é inclusão escolar, uma vez que não há Legislações específicas que estipulem os parâmetros educacionais que devem ser guiados nesses casos. Não há documentos oficiais que regem como devem ser realizados os procedimentos pedagógicos para que estudantes com adoecimento emocional ou transtornos psiquiátricos possam ser incluídos nas escolas (e universidades). Resumindo: não há nada que garanta a esses indivíduos o direito de avaliações específicas, materiais adaptados, adequações curriculares ou cotas em instituições de ensino, como há para quem tem deficiência, autismo e TDAH (Duarte e Louro, 2021). 

O Impacto dos Transtornos Mentais no Aprendizado

Mas, o que precisamos começar a trazer à nossa consciência coletiva – e de forma urgente – é que os transtornos mentais afetam não somente o comportamento, mas também, o aprendizado. Da Silva et al (2022, p. 8) afirmam que “o rendimento escolar está relacionado a uma série de fatores; alguns deles, no entanto, fogem da esfera educacional e pedagógica, como é o caso dos transtornos psíquicos que podem se manifestar nos estudantes”. Sendo assim, o potencial para um aprendizado significativo pode ficar comprometido diante de uma saúde mental debilitada, o que pode implicar diminuição do rendimento acadêmico, levando a mais sofrimento emocional por parte dos estudantes. 

Leia mais: A Evasão Escolar no Brasil: Desafios e Propostas para a Permanência dos Estudantes

Depressão afeta memória, raciocínio, atenção, capacidade de planejamento e, por consequência, funções executivas, que visam ao controle e à regulação do processamento das informações no cérebro (Ferreira et al, 2019). As funções executivas coordenam a nossa capacidade de idealizar, planejar, executar, monitorar e avaliar uma ação e, para isso, dependem de diversas habilidades cognitivas, motivacionais, emocionais e comportamentais. Tais habilidades são essenciais para a manutenção de nosso aprendizado e podem ficar severamente comprometidas em quadros de ansiedade e depressão. Os estudos de Ferreira et al (2019) apontam que, em determinadas situações, a depressão pode, até mesmo, ser confundida com demência, tamanho os problemas de memória gerados. 

A Necessidade de Reconhecer as Capacidades Cognitivas Diferenciadas

Diante disso, não deveríamos considerar que uma pessoa com transtorno mental pode ser também uma pessoa com capacidade cognitiva diferenciada? Se um estudante está com suas atenção, memória, motivação, dentre outras habilidades cognitivas, rebaixadas, por questões de transtorno mental, não deveria esse estudante ter direito aos mesmos recursos e adaptações que têm as pessoas com transtornos de aprendizagem, autismo e deficiência intelectual?  

Leia mais: Evasão escolar: formação de docentes para identificar as causas

Pois é, parece óbvio, mas na prática, não é tão simples assim. Ainda temos uma dificuldade enorme, enquanto sociedade (e a escola se insere nisso), no que se refere ao adoecimento mental. Ninguém pede para um estudante cego se esforçar para ler um livro impresso ou diz a um estudante que não anda que ele não joga futebol na educação física por preguiça. No entanto, é comum estudantes com depressão, ansiedade e outros transtornos mentais ouvirem de professores que, se não entregaram a atividade no prazo, isso ocorreu por preguiça; ou, se um estudante tem baixo rendimento na prova, que isso pode ter sido por falta de esforço ou de estudos, quando, na verdade, na maioria das vezes, a pessoa está refém de um cérebro cognitivamente disfuncional, devido ao transtorno.

Propostas para Acessibilizar o Aprendizado

Por isso, precisamos rever nossos conceitos de quem tem direito ou não a um atendimento educacional especializado diante de dificuldades no rendimento escolar. Os que desenvolvem as políticas públicas, bem como as escolas, precisam começar a ampliar a visão sobre inclusão e discutir como acessibilizar e lidar pedagogicamente com estudantes com transtornos mentais. Às vezes, propostas simples podem fazer a diferença no fazer pedagógico e rendimento no aprendizado, como: 

  1. dar um prazo maior para a entrega de um trabalho para um estudante deprimido; 
  1. propor atividades escritas, em vez de seminários, para um estudante ansioso que tenha dificuldade em falar em público; 
  1. não promover “provas surpresas” para turmas que tenham estudantes ansiosos ou com transtorno afetivo bipolar; 
  1. manter uma sala com poucos estímulos visuais e auditivos para diminuir o estresse; 
  1. colocar o estudante deprimido mais próximo da lousa e dar mais atenção a ele, no dia a dia; 
  1. montar com o aluno um cronograma de estudos para ajudar em sua organização diária; dentre outras ações.  

Enfim, são muitas as possibilidades de atuação docente diante dessa realidade. Todavia, por não termos Leis que amparam esses indivíduos na escola, muitos ficam à mercê da boa vontade e da empatia por parte dos professores, o que nem sempre acontece.  Por isso, enquanto a sociedade não consegue compreender a inclusão como algo natural e orgânico dentro do contexto acadêmico, é necessária a implementação de Leis e de incentivo à formação docente continuada para lidar com as demandas atuais, sendo as questões de saúde mental e a inclusão escolar dos estudantes com transtornos mentais um dos temas mais urgentes na realidade escolar vigente.    

Considerações finais

Por fim, espero que este texto possa conduzir a novas reflexões os envolvidos com a educação, e que, juntos, possamos começar a discutir mais sobre a temática e exigir das autoridades atualizações nos documentos oficiais que regem a educação inclusiva em nosso país. Desse modo, será possível incluir melhor a diversidade em nossa sala de aula e, por consequência, colaborar para que a educação seja, realmente, para todos. 

Minibio do autor

Prof. Dra. Viviane Louro é pianista, educadora musical e neurocientista. Docente do Departamento de Música da Universidade Federal de Pernambuco, onde, além de lecionar, coordena os seguintes projetos: PROBEM DO CAC (programa para saúde mental dos estudantes de música); Liga Acadêmica de Neurociências Aplicada (LIANA); Especialização em Neurociências, Música e Inclusão; e Comissão de humanização e saúde mental da UFPE. Autora de 8 livros na área de educação musical inclusiva e palestrante sobre as áreas de neurociências da música, psicomotricidade e música e educação musical inclusiva. Atualmente, está se especializando em Criminal Profile e psicologia investigativa. 

Referências 

BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da União, Brasília, 23 dez., 1996. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm. Acesso em: 7 set. 2023. 

BRASIL. Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Diário Oficial da União, Brasília, DF. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10216.htm. Acesso em: 28 set. 2023. 

BRASIL. Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002. Dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais – Libras e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10436.htm. Acesso em: 29 set. 2022. 

BRASIL. Lei nº 12.764, de 27 de dezembro de 2012. Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtornos do Espectro Autista. Diário Oficial da União, Brasília, DF. Presidência da República, Casa Civil. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12764.htm. Acesso em: 29 set. 2023. 

BRASIL. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão das Pessoas com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 07 jul. 2013. Seção 1, p. 02. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm. Acesso em: 19 ago. 2022. 

BRASIL. Lei nº 14.254, de 30 de novembro de 2021. Dispõe sobre o acompanhamento integral para educandos com Dislexia ou Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade. Diário Oficial da União, Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14254.htm. Acesso em: 29 set. 2023. 

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Programa de Capacitação e Recursos Humanos do Ensino Fundamental: Deficiência Múltipla, v. 1, fascículos I, II, III, 2000. 

DA SILVA, Gabriel Bitencourt et al. Depressão e rendimento escolar. Revista de Ciência e Inovação, v. 8, n. 1, p. 1-18, 2022. 

DUARTE, Plinio Gladstone; LOURO, Viviane dos Santos. Transtornos mentais no Curso Superior de Música: discussão a partir de uma pesquisa de campo e análise documental realizada na Universidade Federal de Pernambuco. In: Encontro sobre Música e Inclusão, 8., 2021, Natal/RN. Anais eletrônicos […]. Natal/RN: EMUFRN, 2021. Tema: Como anda a Inclusão? Pessoas com necessidades educacionais específicas nos contextos não presenciais de Ensino. p. 76-91. Disponível em: https://emi.musica.ufrn.br/. Acesso em: 20 ago. 2023. 

FERREIRA, Juliana Pinto et al. Alterações de memória e funções executivas em pacientes com depressão. Psicologia, Saúde & Doenças, [Internet], v. 20, n. 1, 2019. 

MARQUES, Luciana Pacheco; ROMUALDO, Anderson dos Santos. Paulo Freire e a educação inclusiva. In: IX Encontro Internacional do Fórum Paulo Freire, 2014, Turim. IX Encontro Internacional do Fórum Paulo Freire. Turim: [s. n.], 2014. Disponível em: https://acervo.paulofreire.org/handle/7891/3512. Acesso em: 20 nov. 2018. 

MARTINS, Ana Carolina et al. Manifesto e diretrizes para uma educação musical inclusiva anticapacitista e antipsicofóbica. Recife: Portal de Educação Emocional, 2023. Disponível em: <www.musicaeinclusao.wordpress.com. Acesso em: 29 de novembro de 2024. 

SANTOS, Élem Guimarães dos; SIQUEIRA, Marluce Miguel de. Prevalência dos transtornos mentais na população adulta brasileira: uma revisão sistemática de 1997 a 2009. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, v. 59, p. 238-246, 2010.

Compartilhar: