Cibercultura: alguns apontamentos
Antes de falarmos sobre a cibercultura, convém abordarmos o ciberespaço.
De onde partimos?
O ciberespaço é o espaço das comunicações por redes telemáticas, que integram pessoas, que se conectam mundialmente pelos dispositivos digitais.
É um espaço que não existe fisicamente, apenas virtualmente. Através da tecnologia, os indivíduos, mediados pelos computadores, estabelecem conexões e relacionamentos que produzem um espaço de sociabilidade virtual (VESCE, 2023). É no ciberespaço que se constrói a cibercultura (LÉVY, 1999).
O que é a cibercultura?
Em linhas gerais, é a cultura do ciberespaço. É o conjunto de práticas, valores e técnicas que se desenvolve no ciberespaço (LÉVY, 1999). Seria uma espécie de reino do faz de conta das histórias infantis, onde é possível desenvolver outros tipos de sociabilidade, de representações de si e do outro, e de conexões, mas que, por outro lado, não tem nada de irreal.
O que é o virtual?
O virtual é diferente do real, mas apostar na oposição entre ambos não é apropriado, pois o virtual não é irreal, como o senso comum, às vezes, pode confundir. Por isso, a primeira lição sobre o virtual é que ele não é uma oposição ao real. O virtual é o processo, o que ainda está acontecendo, antes do fim, do resultado. Para Lévy (1999), o virtual é oposto ao atual, que já se fez, pois o virtual é o movimento.
O virtual é a não presença
A ideia de “não presença” está na própria constituição do indivíduo, sujeito pensante e que sente. Temos contato com a não presença quando acessamos a imaginação, a memória, o conhecimento e a religião, que, para Lévy (2011), são vetores de virtualização, bem antes da informatização e das redes digitais.
O virtual como não presença não é uma novidade propriamente dita. Por exemplo, a ligação telefônica não é uma presença, mas existe, assim como as comunidades virtuais – não estão presentes, mas existem. As empresas virtuais também não estão presentes e, do mesmo modo, existem e não se opõem ao real (LÉVY, 2011).
Por isso, o conceito de rede é tão importante para entendermos o que é o virtual, a semente dos encontros que estão se fazendo constantemente através da não presença e que, na verdade, já tínhamos experimentado antes, através da imaginação, do conhecimento, da memória e da religião.
Apresentando o “Homo zappiens”
O indivíduo que navega no ciberespaço é chamado por Veen e Vrakking (2009) de “Homo zappiens”, porque cresceu acostumado aos recursos tecnológicos, como o controle remoto da TV, o mouse do computador e, recentemente, o celular.
A utilização dos recursos digitais possibilitou que as crianças, por exemplo, se deparassem com um fluxo descontínuo de informações e mesclassem comunidades virtuais e reais, colaborando em rede, conforme suas necessidades.
O termo “zappiens” vem de “zapear”, neologismo que diz respeito àquilo que fazíamos com o controle remoto da TV, mudando de canal rapidamente.
Com a internet, o indivíduo tem um leque em escala planetária, em termos de opções do que buscar, “zapear”. Daí os autores cunharem o termo para se referir ao indivíduo que usa o ciberespaço, sempre em movimento.
A linguagem do ciberespaço
O ciberespaço tem uma linguagem própria, que é a hipermídia – conjunto de textos, imagens e sons de diferentes plataformas que se tornou possível graças ao sistema eletrônico de comunicação, através dos computadores integrados (SANTAELLA, 2004).
Nessa linguagem, a não linearidade é uma característica importante, pois dá ao leitor a possibilidade de ler de uma forma não linear, ou seja, de navegar na internet através de textos, imagens e sons, abrindo várias páginas ao mesmo tempo, sem um sentido exato de início, meio e fim do que deseja conhecer.
O que, por sua vez, faz com que esse leitor construa seu próprio hipertexto e, muitas vezes, se perca, se encontre e vá aprendendo a lidar com a infovia, como podemos observar em Santaella (2004, p. 13):
[…] como descobrir, através do comportamento visível que o usuário exibe diante da tela, aquilo que não está visível, isto é, os mecanismos cognitivos e perceptivos que guiam, a maneira de um sonar, as escolhas instantâneas que este usuário é capaz de fazer diante das enxurradas de signos das telas do computador, e escolhas que o levam para encontrar caminhos que são só dele, no emaranhado de ligações oblíquas internas e de nexos remissivos em um jogo de associações que, “com cinco passos apenas, podem levá-lo de Platão a salsicha” (ECO apud WIRTH, 1998, p. 105).
Um exemplo de produção do próprio hipertexto está na canção de Gilberto Gil, “Pela Internet”, de 1997, que expõe o caráter criativo, dinâmico, não linear da criação do hipertexto pelo leitor, conforme é possível observar no trecho a seguir:
Na canção de Gilberto Gil, o foco vai para várias direções, do Nepal ao Japão, das fãs de Connecticut ao chefe da Mac-milícia de Milão, dos bares do Gabão para o jogo de vídeo-pôquer na Praça Onze.
O leitor e criador do hipertexto é convidado a navegar ao sabor das marés, criando sociabilidades através de comunidades virtuais e presenciais, ampliando as possibilidades de conexão e de informação, construindo, assim, seu próprio mundo, tanto a partir do que é legal e normativo quanto do que não é, como expressa a letra da música.
A internet gerou aptidões e habilidades específicas
Estamos diante de um novo tipo de leitor: o leitor da cibercultura. Por isso, podemos dizer que novas habilidades perceptivas e cognitivas estão por trás desse novo modo de comunicação.
Para Santaella (2004), passamos de um leitor contemplativo, típico da Idade Média, que mergulhava profundamente em um livro e lia no silêncio, saboreando cada palavra, para um leitor movente, no pós-Revolução Industrial, que vai ler também por imagens, o típico leitor de jornal, e ainda para o leitor imersivo, em estado de prontidão, conectando-se entre nós e nexos em um roteiro labiríntico, do qual é autor com sua seleção de imagens, músicas e documentos.
Esse tipo de leitor somos nós. Esse é o leitor da hipermídia, que vai aprendendo montando seu hipertexto, com Instagram, Scielo, passando por Beyoncé, Whindersson Nunes, Galãs Feios, Leonardo Boff e Ludmilla.
A nossa forma de aprender e de apreender o mundo mudou?
Passamos de um mundo oral para o da escrita, e da escrita estamos vivendo a passagem para a internet, para o virtual. E tudo o que é novo causa estranhamento e espanto, como notar que o perfil do leitor mudou com as novas tecnologias.
Para Santaella (2004), é importante ampliarmos nosso conceito de leitura, expandindo o conceito de leitura do livro para a imagem, e desta para formas híbridas de signos e símbolos, que passam pelo audiovisual e por outros tipos de apropriação e descoberta, até mesmo do território, da cidade, por exemplo.
No filme Her (2013), de Spike Jonze, que aborda a relação entre um homem e um sistema operacional, o espectador é convidado a ler a cidade, que, em certo sentido, também é um personagem.
Ao mesmo tempo em que o protagonista é muito conectado, a ponto de se apaixonar por um sistema computacional, ele transita pelos signos da cidade, com suas luzes de informes publicitários e o silêncio dos transeuntes, cada qual conectado ao seu próprio dispositivo digital.
O indivíduo da cibercultura é um ser em movimento. Está sempre flanando entre um aplicativo e outro, entre textos, vídeos, sons e interações. O seu cérebro está se adaptando a fazer várias operações diferentes, várias leituras.
Assim como houve uma educação para o audiovisual, que o Brasil fez com destreza até o momento, há formas de desenvolver e se apropriar de habilidades para navegar no ciberespaço.
Cibercultura precisa de educação para sua expansão
Para Santos, Ribeiro e Santos (2018), as transformações sociais e culturais trazidas pela cibercultura, além de afetar a forma como nos comunicamos, tornaram possível que todos possam ser autores e pronunciar sua subjetividade no mundo.
A cibercultura representa, de certa forma, a democratização da produção cultural e de conteúdo, que antes era restrita aos grandes conglomerados de mídia.
“De certa forma” porque, aqui, estamos considerando apenas os indivíduos incluídos digitalmente, que têm acesso a uma tecnologia digital e a um pacote de dados de internet para navegar, já que o objetivo aqui não é abordar a exclusão digital.
O indivíduo torna-se sujeito, ao poder narrar a sua própria história do seu jeito (HOOKS, 2019), sem se subordinar aos esquemas da colonialidade, que inferioriza as minorias.
Aliás, narrar é o que proporciona ao sujeito sua existência, ou seja, a possibilidade de se apropriar da narrativa sobre sua vida e tomar as rédeas da construção de sua história, que pode ter sido sistematicamente silenciada e apagada (KILOMBA, 2019).
A internet pode ser muito potente para enfrentar a exclusão de quem antes era apenas excluído e não tinha o direito de se pronunciar sobre si mesmo.
Um exemplo é o influenciador digital Ivan Baron, que luta contra o preconceito e o capacitismo nas redes sociais, se apropriando do seu lugar de fala, levando à reflexão, seja respondendo a piadas difamatórias ou narrando com humor e leveza situações do cotidiano de pessoas com deficiência.
Conclusão (ou para onde vamos)?
Este poderia ser um texto dialético, mas não é. Nossa intenção não foi problematizar a cibercultura, discutindo o quanto ela pode ser construtiva ou o quanto ela pode ser nociva à saúde, à educação e à sociabilidade.
A ideia foi refletir sobre o quanto ela pode ser criativa e criadora de formas de sociabilidade e de conexões em rede que inspiram mundos mais inclusivos, a partir da formação desse novo leitor, autor da maneira como sabe ao criar seu hipertexto, e da forma como se expressa na infovia, narrando sua própria história em primeira pessoa, mas aberto a todas as conexões possíveis da internet.
Referências
HOOKS, Bell. Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra. São Paulo: Elefante Editora, 2019.
LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999.
_____. O que é o virtual. 2ª ed. São Paulo: Editora 34, 2011.
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
SANTAELLA, Lúcia. Navegar no ciberespaço: o perfil cognitivo do receptor imersivo. São Paulo: Paulus, 2004.
SANTOS, Edméa Oliveira dos; RIBEIRO, Mayra Rodrigues Fernandes; SANTOS, Rosemary dos. A educação on-line como dispositivo de pesquisa-formação na cibercultura. Rev. Diálogo Educ. Curitiba, v. 18, n. 56, p. 36-60, jan./mar. 2018.
VEEN, Wim; VRAKKING Ben. Homo zappiens: educando na era digital. Porto Alegre: Artmed, 2009.
VESCE, Gabriela E. Possolli. Ciberespaço. InfoEscola, 2023. Disponível em: https://www.infoescola.com/internet/ciberespaco/. Acesso em: 10 set. 2023.