Assembleia escolar: ferramenta de uma escola democrática

Sendo a escola a instituição socialmente responsável pela transmissão intergeracional dos saberes acumulados na sociedade, é natural que ela tenha, como uma de suas funções, a preparação dos cidadãos para atuarem nessa mesma sociedade, por meio de iniciativas como a assembleia escolar.
Em um contexto em que a democracia é valorizada, é natural que se espere, por parte das escolas, uma ênfase nos valores democráticos. Por isso, é muito comum se falar em “gestão democrática”, “preparação para a democracia”, “escola democrática”.
Mas o que é, afinal, uma escola democrática?
É extremamente comum atualmente, nas publicações relacionadas à educação de modo geral, encontrar-se a expressão “escola democrática”. Para pensar sobre ela, Araújo (2007, p.3) propõe a seguinte reflexão:
Uma educação que objetiva a construção de valores democráticos deve partir de temáticas significativas do ponto de vista ético e propiciar condições para que o(a)s aluno(a)s desenvolvam sua capacidade dialógica, tomem consciência de seus sentimentos e emoções (e das demais pessoas) e desenvolvam a capacidade autônoma de tomar decisões em situações conflitantes do ponto de vista ético/moral.
É interessante observar que o autor, nesse excerto, fala sobre uma educação que objetiva a construção de valores democráticos, e não sobre uma “escola democrática”. Essa é uma distinção necessária porque, sendo a função primeira da escola promover o ensino e a aprendizagem de seus estudantes, uma escola democrática não é apenas aquela que é gerida de forma democrática, mas principalmente aquela que promove a construção dos valores de democracia em todos os participantes da comunidade escolar. Este é o objetivo maior, e o funcionamento democrático da instituição é um meio de atingir este fim, pois contraditório seria tentar promover a democracia em um ambiente totalitário.
Ainda no mesmo texto, falando sobre a gestão do cotidiano escolar, o autor cita os distúrbios disciplinares como fenômenos complexos, e afirma que
Enfrentar esses fenômenos exige dos profissionais da educação uma nova postura, democrática e dialógica, que entenda os alunos e as alunas não mais como sujeitos passivos ou adversários que devem ser vencidos e dominados. O caminho está no reconhecimento dos estudantes como possíveis parceiros de uma caminhada política e humana que almeja a construção de uma sociedade mais justa, solidária e feliz. (p. 4).
Assim, além de zelar pela construção dos valores democráticos junto a seus estudantes, uma escola que pretenda ser classificada como “democrática” deve também ter profissionais que adotem uma postura democrática e dialógica em seus fazeres cotidianos, mesmo nos momentos mais difíceis. Além disso, estes profissionais não devem tomar as decisões pelos estudantes, mas auxiliá-los nesta postura, construindo progressivamente a autonomia, o senso crítico e a responsabilidade.
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Seria ingênuo falar em democracia na escola considerando que todos os envolvidos nesta instituição tivessem os mesmos direitos e deveres. Ainda que nos limitássemos à sala de aula, esta premissa não seria verdadeira: professores e estudantes têm objetivos e funções bastante diversos dentro da escola, e a última citação reconhece isso ao mencionar a “assimetria de papeis de estudantes e docentes”. Ao mesmo tempo em que reconhece, o autor dá um encaminhamento a esta questão, resgatando o princípio de equidade, cujo cerne é o atendimento de todos os indivíduos não de forma igualitária, mas de acordo com as necessidades de cada um.
Desta forma, pode-se afirmar que, sob certo ponto de vista (na ótica funcional), docentes e discentes são diferentes, e é necessário que esta diferença seja reconhecida e legitimada, para que todos possam atingir seus objetivos. Os professores estão na escola para ensinar, são profissionais da educação, e cabe a eles zelar pela aprendizagem de seus estudantes. Já estes últimos vão à escola para complementar sua formação, para aprender, em todos os âmbitos possíveis em que a aprendizagem possa se dar. Concomitantemente, porém, a condição humana lhes oferece um patamar de igualdade, e é através de um raciocínio dialético, que considere estes dois prismas, que se pode estabelecer com propriedade o conceito de democracia na escola.
As assembleias escolares
A partir dessa perspectiva de escola democrática, que reconhece a assimetria de papeis entre estudantes e docentes, mas que estabelece as bases do diálogo como ferramenta primordial de convivência e que tem por objetivo a construção cotidiana de valores democráticos, surge a proposta das assembleias escolares.
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Inicialmente propostas por Anton Makarenko, por meio de seu trabalho com a cooperatividade na escola (Luedemann, 2002), as assembleias escolares são uma forma de organização que garante a participação de todos os envolvidos nas decisões a serem tomadas na instituição escolar.
Há diversas possibilidades de se organizar assembleias escolares: elas podem ser feitas regularmente ou em situações extraordinárias; podem contemplar o grupo de uma sala, um segmento, ou a escola toda; podem ser coordenadas por um ou mais professores, ou pelos próprios estudantes. Tudo vai depender do contexto, dos objetivos a serem alcançados e do que faz sentido para cada instituição escolar.
Ao participar de uma assembleia escolar, o estudante tem a oportunidade de exercer sua cidadania, de experimentar os valores de um regime democrático e pode, pouco a pouco, ir construindo e repensando suas atitudes, posturas e participação social.
Há quem pense que as assembleias escolares servem apenas para resolver problemas disciplinares. Embora possam também ter essa função, elas vão muito além disso: quando realizadas com regularidade, as assembleias trazem uma sensação de pertencimento, aprofundando os vínculos do estudante com o grupo, com a escola e ensinando, de modo prático, as possibilidades e desafios de se exercer a cidadania em um regime democrático.
Como organizar uma assembleia escolar?
Para professores e/ou gestores que desejem implementar as assembleias escolares em sua escola, o primeiro passo é definir o formato. Essa definição pode se dar a partir das respostas a algumas questões, como:
- As assembleias servirão para decidir assuntos relacionados a cada grupo, ou à escola toda? Quem, portanto, deve participar delas?
- Qual será a regularidade das assembleias ordinárias?
- Quais decisões da escola podem ser compartilhadas entre todos?
Como as escolas, em geral, têm questões particulares de cada grupo, e também aquelas comuns à escola toda, o ideal é que os diferentes formatos de assembleia se alternem. Podem acontecer as assembleias de classes semanalmente, e uma assembleia da escola mensalmente, por exemplo.
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Mesmo estudantes pequenos (dos últimos anos da Educação Infantil) podem participar das assembleias. Evidentemente, porém, conforme a criança vai crescendo e chegando à adolescência e juventude, maior vai sendo sua autonomia e capacidade de tomada de decisões – ampliando-se, dessa forma, sua participação nas assembleias.
A pauta, a princípio, pode ser trazida pelos professores e gestores: nas primeiras assembleias, tudo é um aprendizado. Então, é importante trazer questões objetivas, ouvir as propostas dos estudantes relacionadas a elas e, se não for possível chegar a um consenso por meio do debate, abrir uma votação. Com o tempo, a pauta pode ir sendo construída pelo próprio grupo. Uma boa alternativa é deixar fixado em uma parede (da sala ou da escola, a depender do tipo de assembleia) um cartaz permanente com três colunas: “Eu critico”, “Eu felicito” e “Eu proponho”.
As crianças e adolescentes podem ser incentivados a permanentemente preencherem esse cartaz, na medida em que forem pensando sobre questões da escola. A cada assembleia, então, o cartaz vira a pauta da reunião: pode-se começar pelas críticas e, assim, serem discutidos os problemas do grupo e as possibilidades de solução; em seguida, podem ser postas em discussão as propostas realizadas e, para finalizar, as felicitações, de modo que todos terminem a reunião celebrando juntos as conquistas já realizadas.
Algumas regras podem ser acordadas previamente com o grupo: por exemplo, pode-se estabelecer que, na assembleia, não podem ser citados nomes de colegas, com base no princípio de que as críticas devem ser dirigidas às situações e, possivelmente, às atitudes, mas nunca às pessoas.
É importante também estabelecer o tempo de duração da assembleia. A depender da idade dos estudantes e do quanto estiverem habituados a essa prática, a duração pode ser definida entre 30 e 60 minutos. É fundamental controlar o tempo, de modo que as discussões mantenham a objetividade e as decisões possam ser tomadas sem que se perca o foco.
A coordenação da assembleia também pode variar, à medida que os estudantes vão se habituando a essa prática. No início, ela pode ser coordenada pelo(a) professor(a): além de propor os temas da pauta, controlar o tempo e tentar garantir maior objetividade às discussões, cabe ao coordenador também organizar as falas dos participantes (o ideal é instituir o sistema de inscrições para falar, comum em assembleias não-escolares também) e fazer o registro da reunião. Com o tempo, os próprios estudantes podem assumir essa tarefa, ainda que o façam de modo dividido: um estudante pode ficar responsável por trazer os temas da pauta, propondo-os para discussão, outro pode ficar incumbido de organizar as inscrições dos participantes, e um terceiro ser o responsável pelo registro e organização da ata da assembleia.
Quando se começa esse processo, a primeira assembleia escolar não é fácil. Algumas discussões de problemas podem degringolar para agressões verbais, algumas soluções propostas podem ser inviáveis, ou as pautas podem ser esvaziadas. É preciso, porém, insistir. A democracia não é fácil, mas é necessária, e todo o esforço para concretizá-la junto às novas gerações é sempre bem-vindo!
Referências
ARAÚJO, U. F. Educação comunitária e a construção de valores de democracia e cidadania. In: 33rd Annual Conference of the Association for Moral Education. New York, 2007.
LUEDEMANN, C. S. Anton Makarenko. Vida e obra: a pedagogia na revolução. São Paulo: Expressão Popular, 2002.
Minibio
Elaine Cristina R. G. Vidal é docente da Faculdade de Educação da USP (FEUSP), na graduação e na pós-graduação. É graduada em Letras (USP) e Pedagogia (Universidade Metodista/SP); possui especialização em “Alfabetização: relações entre o ensino e a aprendizagem” (ISE Vera Cruz) e em “Ética, valores e cidadania na escola” (Univesp); mestra e doutora na área de Psicologia, Linguagem e Educação pela Faculdade de Educação da USP. Autora dos livros “Projetos didáticos em salas de alfabetização” (Appris, 2014), “Literatura e crianças: um encontro necessário” (Pluralidade Singular, 2019) e “A infância na escola: reflexões sobre Educação Infantil” (Pluralidade Singular, 2023). Possui experiência como professora e gestora em todos os níveis e segmentos da Educação Básica, no Ensino Superior e como editora no Núcleo de Produção de Conteúdo e Formação da Saber Educação.