A linguagem formal ainda tem espaço na educação atual?
O Arnesto nos convidou pra um samba, ele mora no Brás
Nós fumos, não encontremos ninguém
Nós voltermos com uma baita de uma reiva
Da outra vez, nós num vai mais
Nós não semos tatu! (Samba do Arnesto, de Adoniran Barbosa, 1953)
Eu nasci há dez mil anos atrás (Eu nasci há dez mil anos atrás, Raul Seixas e Paulo Coelho, 1976)
Beija eu, beija eu, beija eu, me beija… (Beija eu, Marisa Monte, Arnaldo Antunes e Arto Lindsay, 1991)
A merendeira desce, o ônibus sai
Dona Maria já se foi, só depois é que o sol nasce
De madruga’ é que as aranha desce no breu
E amantes ofegantes vão pro mundo de Morfeu (A ordem natural das coisas / Chiclete com banana, Emicida, 2019)
Não adianta, agora eu vou marolar
Subiu vários beck, várias views
Nós passou, ela riu, Buffalo é o Bill
Buffalo, Buffalo, Buffalo Bill (Eu te avisei, Mc Cabelinho, 2021)
Bora catar logo isso que o monstro dropou (Simulação de um diálogo no jogo Fortnite)
Deixa seu joinha, clica no sininho, se inscreve no canal e bora lá! (Fala em um canal de Youtube, 2024)
Pô, nesse fds ta osso 😣 (exemplo criado baseado em conversas de Whatsapp)
Provavelmente você já teve contato com algum desses trechos de textos em algum momento de sua vida. São exemplos de épocas diferentes, de estilos musicais diferentes, de comunidades diferentes e, é claro, representam culturas diversas. No caso das músicas, por acaso você se questionou sobre a formalidade ou informalidade da letra? Se você questionou, será que teria a ver com a origem do compositor e o nicho social com o qual ele tenta dialogar diretamente?
Acho importante iniciarmos o texto com essa reflexão, já que nosso título envolve mais do que representações culturais em letras de música. Quando falamos de educação e do ensino formal da língua, principalmente, estamos lidando com diversos tipos de expressões, orais e escritas (pelo menos assim deveria ser).
A ênfase escolar na língua formal escrita, que sempre teve lugar cativo no ensino da língua com suas conjugações de pretérito mais-que-perfeito, suas orações subordinadas substantivas objetivas diretas, muitas vezes com frases soltas e descontextualizadas, trouxe-nos (olha a ênclise aí!) a sensação de que “não sabemos português”, já que não nos víamos representados nos exercícios, nos poemas, nos contos, nas músicas trabalhadas pelos professores. O próprio trabalho com a oralidade ficava em segundo (ou terceiro, quarto) plano em sala de aula. Oralidade na educação básica: propostas de práticas | e-docente é uma importante leitura para discutirmos essa questão.
A informalidade que antes víamos claramente presente no samba, no funk (que sempre sofreram preconceito por parte de muitos dos que fazem parte da “elite”), hoje em dia, com o alcance das redes sociais (veja mais sobre a questão do uso das redes sociais no ensino de língua em O uso das redes sociais no ensino de Língua Portuguesa), é comum nas composições musicais graças à proliferação e à maior divulgação de letras que representam a diversidade cultural de nosso país. Cada vez mais “línguas portuguesas” são praticadas e divulgadas em manifestações culturais, o que faz que tenhamos a sensação ainda mais intensa de que precisamos viver para além da bolha que nos acostumamos a chamar de “padrão da língua”. Mas, que padrão é esse, que representa uma parcela tão pequena da população e que praticamos em situações tão específicas?
A língua, a escola e as chaves
“O que se questiona é um ensino de língua materna voltado apenas para o aprendizado da norma padrão da língua, em sua modalidade escrita. Obviamente, esse é um dos objetivos do ensino da língua, isso é inquestionável, visto que a variedade não padrão o aluno já domina. Porém, é a forma como tal prática é desenvolvida que precisa ser rediscutida. Trabalha-se a linguagem fora de qualquer contexto de produção do discurso. A linguagem da sala de aula não considera as nuances das variedades linguísticas que estão ali interagindo. A escola também é um contexto de interação entre indivíduos que trocam, entre outras coisas, experiências distintas. E isso tudo se reflete significativamente na linguagem do aluno (escrita e falada).” (TAGLIANI, 2007)
Com o trecho de Tagliani, venho afirmar que não estou aqui defendendo que o ensino da modalidade padrão da língua seja deixado de lado. A variedade culta é uma das diversas que existem em nossa comunicação do dia a dia, por isso precisa estar presente na escola, afinal, a missão desta é preparar o aluno para a vida, não é mesmo? No entanto, assim como a autora, ressalto que a norma padrão escrita é apenas UMA, haja vista os exemplos que trago no início deste texto (e que são ínfimos diante da enormidade de situações pelas quais passamos).
A metáfora sempre utilizada para se falar das múltiplas linguagens é a da vestimenta, em que precisamos escolher aquela que é a adequada ao evento. Em minhas reflexões com meus alunos, gosto de usar como referência as chaves. Quanto mais chaves tivermos, mais portas abriremos, por isso, não adianta forçarmos uma fechadura com uma chave que não é a adequada. Lidamos com múltiplas situações no dia a dia, dialogamos com diversos atores, temos intenções diferenciadas, então, carregamos um molho de chaves prontas para serem utilizadas no momento certo. Quando falta uma chave, ficamos de fora e não conseguimos adentrar ao ambiente comunicacional.
Dentro dessa perspectiva, quais chaves são confeccionadas pela escola além daquela que abriria portas para a formalidade? Será que, quando nos formamos, estamos preparados para abrir muitas portas? Pior ainda: será que essa porta da formalidade é aberta com facilidade ou a chave confeccionada é cheia de imperfeições, que nos permite, no máximo, olhar pelo buraco da fechadura?
Nossos alunos estão imersos em cada vez mais ambientes com linguagem própria, criada para dar vazão a necessidades daquela comunidade específica, todas elas fugindo da formalidade da norma culta. Isso realmente pode ser ignorado pela escola, pela universidade, por toda a estrutura docente? Para a maioria de nós, a vida acontece muito mais na informalidade do que na formalidade, então, se pretendemos educar verdadeiramente para a vida, não podemos ignorar esses contextos.
Como professores, precisamos estar ainda mais atentos a essas possibilidades comunicacionais, já que lidamos com pessoas de diversas gerações, diversas classes sociais, com interesses igualmente diversos. Essa é a nossa profissão. Quando conseguimos entender nosso público e conquistar a chave adequada para um maior número de portas, mais chances teremos de entrar e frequentar aquele lar verdadeiro, como membros da comunidade, não como estranhos que estão ali apenas para pesquisar algo de fora para dentro, como num safari, presos a um carro cheio de grades.
Atualmente, vemos crescerem iniciativas que visam a valorizar novas formas de divulgação de arte, fugindo da formalidade editorial de outrora (acabei sendo formal demais agora…).
A FLUP e seu papel como divulgadora de talentos periféricos
A FLUP (Festa Literária das Periferias) surge como uma forma de valorizar talentos marginalizados e poucas oportunidades editoriais ao longo da história, com foco no povo preto. Neste ano, a feira, que já está em sua 14ª edição, ocorreu entre 11 e 17 de novembro, promovendo não só mesas literárias, mas saraus, rodas de samba, shows, performances teatrais, conversas, tudo com foco em lutas cotidianas do povo periférico, principalmente a cultura preta.
Iniciativas como essa vêm para combater a exclusão e o preconceito sofridos há séculos por culturas consideradas “menores”, com sua existência combatida e, muitas vezes, ignoradas. Já foi assim com o samba, o funk, a literatura de cordel… O que elas têm em comum? Suas origens no povo a quem sempre foi negada ou negligenciada a educação formal, o acesso à chamada “norma culta”, afinal, o que surge dos “incultos” deve ser ignorado.
Então, quando percebemos a multiplicidade ganhar voz, ganhar espaço, mostrar sua forma de se expressar, que é diferente da chamada “elite”, percebemos que não podemos valorizar apenas uma linguagem, apenas um português que é considerado o “correto”.
Entendo que seja muito difícil para nós, acostumados a acreditar na caneta vermelha do professor de português como a juíza da qualidade de nossas expressões, entender que podemos, sim, nos expressar culturalmente de uma maneira que fuja dos padrões, que não seja ditada pela minoria que não conhece a realidade do país. Mas é essencial que consideremos e respeitemos todas as culturas e tudo que elas têm a nos oferecer, incluindo em vez de excluir. Cada chave dessas será extremamente valiosa para que possamos adentrar nos ambientes e sermos vistos como pessoas dispostas a dialogar, a buscar soluções para problemas comuns, e não como um detentor de uma chave mestra (linguagem formal), que entra sem permissão para fiscalizar e condenar o que ocorre em cada ambiente.
Bom, mas, mesmo cientes da necessidade de incluirmos múltiplas formas de expressão, será que, quando nos vemos inseguros, acabamos correndo para a linguagem formal como abrigo, como porto seguro?
O formal como local de segurança
Quando queremos buscar uma informação confiável, seja de alguma empresa, de algum site, de alguma pessoa física, em quem confiamos? Provavelmente, a resposta quase que unânime é que as empresas, sites, pessoas com mais credibilidade são aqueles que demonstram maior seriedade, maior formalidade, tanto no formato quanto no conteúdo.
Uma empresa com experiência, que se faz presente em publicidades, tende a nos conquistar mais facilmente do que uma de fundo de quintal (claro, depende de quanto estamos dispostos a gastar); um site mal construído, com linguagem chula, tende a ter menos confiança do que outro com design bonito, informações bem organizadas; quando vamos a alguma entrevista de emprego, conseguimos ter mais credibilidade se nos vestirmos mais formalmente. O mais interessante é que sabemos bem que todas essas belas roupagens podem ser empregadas justamente para nos enganar, já que a empresa, o site e a pessoa, mesmo que “bem vestidas”, podem não ser confiáveis.
Com a linguagem, ocorre algo parecido há séculos. Um discurso bem empostado, vindo de alguém com aparência formal (como um apresentador ou uma apresentadora de telejornal em horário nobre), convence muito mais do que uma notícia que surge da boca de uma pessoa pobre que acabou de presenciar um fato, mas não soube fazer a concordância verbal adequada (mesmo que o fato tenha sido filmado). Então, é nesse sentido que, mesmo que sejamos inclusivos, tenhamos ideias libertadoras, habitualmente, muitos de nós recorremos ao formal como porto seguro, como local de segurança, mesmo que a própria palavra remeta à forma, não ao conteúdo.
Conclusão
Então, caro leitor, é na conclusão que tento responder à pergunta feita no título deste texto: “A linguagem formal ainda tem espaço na educação atual?”. Sim, claro que tem, já que ela é uma importante ferramenta de acesso para que conquistemos objetivos traçados. Mas ela não é a única forma de expressão, superior às outras, magnânima, mais importante, chefa das demais variantes. Ela é mais uma das chaves que devemos colecionar; talvez a mais difícil, concordo, já que depende de um esforço não natural e de uma educação formal para que saibamos todos os seus meandros (olha eu me traindo e usando palavra formal demais de novo…). Porém, ter em nosso chaveiro essa valiosa peça não é suficiente diante das inúmeras portas com as quais nos deparamos em nossa vida, seja como usuários comuns da língua seja como professores.
Olhar para o outro, ouvir o outro, ter uma relação verdadeira com o outro demanda esforço, mas não um esforço em aprender uma língua dita culta, padrão; é saber que o que o outro tem a dizer está muito além da concordância nominal, do uso da pontuação, da letra colocada na posição silábica “certa”; é pegar a chave do outro emprestada para, junto do outro, moldar novas chaves que ele ainda não tenha, nessa troca verdadeira que aumentará a coleção do outro e também a minha.
Se o Arnesto nos convidou pro samba e nós num encontremo ninguém, talvez seja porque acham que temos pensamentos ultrapassados, que nascemos há dez mil anos atrás, por isso não querem beijar nós nem em cumprimento, seja cedo ou nas madruga, no breu. Se nós passou e ela riu, então… É porque nós não dropou nada no caminho. Nada digno de receber um joinha. Então, só nos resta 😭.
Glossário
Madruga: madrugada;
Breu: escuridão;
Dropou: largou, deixou cair;
Joinha: sinal de positivo. No caso das redes sociais, principalmente Youtube, remete ao botão de curtir.
Referências
FEIRA literária das Periferias (FLUP) ocupa o Circo Voador com oficinas, debates, shows e rodas de samba: veja programação completa, Guia Rio, G1, 11 nov. 2024. Disponível em: https://g1.globo.com/guia/guia-rj/noticia/2024/11/11/feira-literaria-das-periferias-flup-ocupa-o-circo-voador-com-oficinas-debates-shows-e-rodas-de-samba-veja-programacao-completa.ghtml. Acesso em: 20 nov. 2024.
RABELO Adriana de Paula. Adoniran Barbosa e a língua certa do povo. Rev Inst Estud Bras [Internet]. Set. 2020. p. 37-50. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rieb/a/GtMbpJ4qCs6wTqVPd9LXRxJ/#. Acesso em: 21 nov. 2024.
TAGLIANI, Dulce. A perspectiva funcional da linguagem de Halliday e o ensino de Língua portuguesa, VIDYA, v. 24, nº 42, p. 109-116, jul./dez., 2004 – Santa Maria, 2007. Disponível em: https://repositorio.furg.br/bitstream/handle/1/2277/A%20perspectiva%20funcional%20de%20linguagem%20de%20Halliday%20e%20o%20ensino%20de%20l%c3%adngua%20portuguesa.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 18 nov. 2024.
Minicurrículo
Tiago da Silva Ribeiro é professor do Magistério Superior no Instituto Nacional de Educação de Surdos nas disciplinas de Língua portuguesa e Tecnologias da informação e comunicação. Tem experiência em turmas do Ensino Fundamental e Médio, além de já ter atuado na modalidade on-line como mediador, orientador de trabalhos finais de curso, desenhista educacional, professor-autor e coordenador de curso. Seu Doutorado em Letras é pela PUC-Rio e teve como tema de trabalho o Internetês. Além de ser fã de Chaves, busca fornecer o máximo de chaves a seus alunos, para que estejam sempre prontos a abrirem as portas certas, no momento certo.