A escolha da profissão no Ensino Médio
Existe um momento na vida do jovem, muitas vezes ainda adolescente, que exige uma atenção especial dos profissionais de educação e da família. O estudante, prestes a ingressar no ensino médio ou recém-saído dele, inicia a busca por uma definição do seu futuro próximo, fazer a escolha da profissão no Ensino Médio, um planejamento que envolve uma expectativa da sociedade que fixa padrões compulsórios sobre o que significa ser “bem sucedido”.
Há uma convenção social nessa fase que associa realização profissional ao fato do adolescente fazer sua escolha de forma rápida e objetiva.
É de extrema relevância frisar que, o ponto de partida desta reflexão apresenta construções sociais que se contrapõem a dois termos, costumeiramente utilizados, tanto pelo senso comum, quanto pela Psicologia (FEIJOO e MAGNAN, 2012): orientação e vocação. A nomenclatura “orientação vocacional”, por exemplo, foi substituída pelo termo AEP (Análise da Escolha Profissional).
O significado de vocação para a psicologia
Feijoo e Magnan (2012) justificam essa mudança afirmando que a vocação remete a um “dom divino”, o que, imediatamente, exclui os aspectos sociais do processo de autoconhecimento e de escolha profissional.
Por sua vez, a orientação direciona o jovem a uma relação autocrática, em que assume o papel de “desnorteado” e não autônomo, dependendo de que fatores externos, ou seja, de que a tríade “sociedade x colégio x família” ajam ativamente como responsáveis pela escolha que o jovem não protagonizou.
É urgente ampliar as concepções sobre ingresso no ensino superior, devido às diversas classes sociais que compõem os perfis do(a) aluno(a) nesta fase.
O caráter competitivo anacrônico dos colégios, pertencentes às camadas médias, ao invés de direcionar uma formação que promova cidadania, prepara alunos(as) para o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), precocemente, e inserem mudanças em boa parte de suas práticas pedagógicas, a fim de atender às exigências da avaliação externa.
Tais formatos, transformam alunos(as) em competidores que buscam o melhor ranking, que almejam as profissões de prestígio, ambicionando ascender socialmente ou se manter na classe social pertencente.
A lógica de mercado das instituições
A lógica de mercado das instituições de ensino determina o resultado e os destinos desses alunos(as), de acordo com a posição em que ocupam no corpo social.
Conforme o levantamento de dados realizado a pedido do jornal Estadão por SALES (2018), o candidato em vulnerabilidade social e pobreza tem apenas uma chance em 600 (0,16%) de compor 5% das maiores notas, enquanto 1 a cada 4 alunos(as) de classe média consegue bons resultados.
O impacto dos efeitos socioeconômicos é de até 85% no resultado de quem se submete ao Enem. Estes fatores, quase que deterministas, são excludentes e delineiam camadas de classe dentro da competição.
Antes de aprofundar sobre alguns aspectos subjetivos da escolha profissional, é importante sinalizar também que os ricos detêm o poder de escolha e de competição entre as vagas dos cursos de maior prestígio social. Sendo assim, é esperado que haja competição dessas vagas entre eles.
A diferença entre perspectivas
O mesmo fenômeno acontece entre os(as) alunos(as) das camadas mais baixas, ingressantes em profissões que oportunizam celeridade de ingresso no mercado de trabalho.
Os(as) alunos(as) de maior poder aquisitivo articulam a ideia de que ser bem sucedido significa escolher profissões de notoriedade coletiva e status social; enquanto os menos abastados necessitam pensar na profissão como sinônimo de trabalho e sobrevivência, não apenas como fator de identidade e satisfação pessoais.
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Compreendendo a profissão no Brasil
Entretanto, diante do sentido polissêmico das profissões, é necessário observar as perspectivas a partir de um conceito de profissão, à brasileira – que não é único, não é cartesiano, nem linear, porém ilimitado e sistêmico. Na verdade, são conceitos que formam um construto histórico, atrelados a determinados espaços e épocas distintas.
Compreender a profissão no Brasil reivindica identificar como a sociedade brasileira foi constituída (RUDÁ, 2016), encarando os resquícios da escravidão que demarcou fortemente as características das relações trabalhistas no país. O acesso a direitos sociais está tradicionalmente atrelado à identidade profissional brasileira.
Segundo Barbosa (2003), os grupos profissionais, no processo de construção da sua identidade e do seu lugar social, são elementos essenciais na configuração dos padrões de relações sociais dominantes no Brasil. Tais relações são indispensáveis no processo de desenvolvimento do jovem adulto. São elas que fundamentam a concepção da subjetividade humana.
A definição social atrelada à profissão no Ensino Médio
Gregory Bateson (1986) afirma que as relações precedem às coisas e pessoas. Segundo o antropólogo, não há sentido falar sobre comportamento humano sem procurarmos suas raízes naquilo que acontece entre as pessoas.
As relações constituem o indivíduo e as suas escolhas estão atreladas a essas interações. Nesse sentido, a profissão é também um componente estruturante do “eu” social. Antes, havia apenas um perfilamento estudantil, um nome e um sobrenome escolhido pelos pais, havia traços de personalidade, caracterizando e demarcando uma identidade.
Após a escolha profissional, surge mais um elemento constituinte do sujeito como “ser no mundo”. Evoca-se o indivíduo pelo nome e pelo título estampado no diploma de graduação, que também o define socialmente.
Escolha da profissão e família
Nesse sentido, a família pode exercer um grande poder de persuasão na escolha da profissão (DIAS, 2019), induzindo o jovem a dar continuidade ao seu legado profissional.
Desse modo, surgem repetições dos padrões transgeracionais, ou seja, uma transmissão psíquica entre gerações que garante que o filho também seja advogado, ou médico, assegurando a manutenção do status social familiar. O filho estudante pode também representar a realização dos sonhos dos pais, sem que estes prestem a devida assistência aos desejos do próprio filho.
A “perversão social” segundo Almeida
Para compreender os paradoxos dos marcadores sociais nesse contexto, é imprescindível acompanhar o raciocínio de Almeida (2013). Ele enfatiza que a minoria dominante tem condições financeiras de pagar ensino básico privado, geralmente, de melhor qualidade, garantindo inclusive, descontos tributários do imposto de renda a esses familiares que investem valores altos na educação de seus filhos.
Em contrapartida, a população, que é majoritariamente pobre, segue para as escolas públicas, geralmente de qualidade inferior, por questões que transcendem a prática pedagógica em si. Sendo assim, torna-se mais difícil assegurar o acesso dessa classe ao ensino superior público, sujeitando-se à educação superior privada de qualidade duvidosa, em sua grande maioria, a serviço da educação como mercadoria.
Ainda como consequência, escolhem cursos fora da rota de seus planejamentos de carreira, e, em vários contextos, precisam trabalhar para manter as prestações da universidade particular, correndo risco, inclusive, de comprometer seu rendimento acadêmico.
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Esse ciclo não se encerra por aí: esses jovens pobres finalizam seus cursos com menores colocações no mercado de trabalho, mais propensos ao desemprego e à exclusão social. Para Almeida (2013), este é o fechamento do primeiro ciclo de perversão social.
O segundo ciclo, controlado pela reprodução da desigualdade social, por meio da educação, se desenvolve, quando os ricos alcançam educação pública superior de alta qualidade e, assim, o fechamento do ciclo de perversão social se fecha com a chegada triunfal desses profissionais nas melhores vagas do mercado de trabalho.
A influência dos marcadores sociais na escolha da profissão no Ensino Médio
Diante disso, durante a análise da escolha profissional, é preciso observar, preventivamente, as intersecções que caracterizam o(a) aluno(a). Tais características, na maioria das vezes, são determinantes para seu futuro profissional. Gênero, raça, classe, geração, território são marcadores sociais que definem, categoricamente, o destino da vida desses jovens.
A teoria de Bibeau
De acordo com a teoria de Bibeau (2008, apud RUDÁ, 2016), o desenvolvimento da identidade profissional se baseia em três dimensões: a dimensão individual-coletiva, a dimensão sociocultural e a dimensão político-econômica.
Habilidades, interesses, maturidade, personalidade, interferência familiar, entorno local, capital econômico e cultural, estrutura social do país, culturas profissionais da região, prestígio profissional, política públicas educacionais, entre outros elementos, que se interconectam com os três eixos apresentados pelo autor, são cruciais no momento de avaliação dos dados de realidade vivenciados no momento da escolha.
Estas condicionalidades sociais são forças que devem nos afastar de uma análise de escolha profissional centrada apenas na personalidade do indivíduo. Problematizar o ritual de escolha profissional vivido pela sociedade é um desafio que nos convida a apreciar os agentes macrossociais que definem não apenas os sistemas educacionais: definem também a história de vida desses sujeitos de direitos.
Conclusão
Faz-se conveniente questionar se, de fato, esse formato que treina o jovem para ser candidato e, posteriormente, faz dele parte de uma massa trabalhadora acrítica, condiz com os ideais democráticos e constitucionais que creem na busca do direito de igualdade e de acesso à educação.
Quando o Estado não garante acesso à educação, ele está tolhendo uma escolha que pode ser plural, assumindo, determinantemente, essa escolha no lugar do estudante, pois arranca dele a liberdade e o direito de ser o que deseja. É inadiável a promoção de Políticas Públicas Educacionais que erradique a reprodução das desigualdades nesses espaços de construção de saber.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA Filho N. Contextos, impasses e desafios na formação de trabalhadores em saúde coletiva no Brasil. Ciênc. saúde coletiva. 2013;18(6):1677-1682.
BARBOSA, Maria Ligia de Oliveira. As profissões no Brasil e sua sociologia. Dados, v. 46, n. 3, p. 593-607, 2003.
BATESON, Gregory. Mente e Natureza. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora S.A., 1986.
DIAS, Maria Luiza. Transmissão, herança e sucessão: identidade do adolescente e escolha profissional. Terapia de família com adolescentes, 2019.
FEIJOO, Ana Maria Lopez Calvo de; MAGNAN, Vanessa da Cunha. Análise da escolha profissional: uma proposta fenomenológico-existencial. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 32, n. 2, p. 356-373, 2012.
RUDÁ, Caio. Educação superior e escolha profissional no Brasil. Revista Psicologia, Diversidade e Saúde, v. 5, n. 1, 2016.
SALES, Leonardo. Diz-me quem és e calcularei tua nota do ENEM. Um novato em ciências de dados: análise de dados aplicada a temas de interesse geral. 2018. Disponível em:
https://leosalesblog.wordpress.com/2018/10/31/diz-me-quem-es-e-calcularei-tua-nota-no-enem/ Acesso em: 10 jun. 2021.
Camille Izabella Mariana Gomes da Silva
Psicóloga Clínica Sistêmica. Professora universitária, Pesquisadora sobre Relações Raciais. Mestranda em Antropologia (UFPE), Especialista em Psicologia Social (CFP) e em Terapia Familiar (UFPE). Ativista Antirracista e Fundadora do Projeto Escutas Pretas.