A educação inclusiva chega ao Ensino Médio
“A inclusão chega ao Ensino Médio?”. Virou pergunta, pois há dúvidas: por que “a inclusão” está personificada? Ela chega? Ela não estava lá? Como ela chegou ao Ensino Médio? Onde ela estava?
A “inclusão” numa perspectiva escolar envolve a educação. Educação por si só, por concepção, deveria ser “inclusiva”, ou seja, educação como forma de humanização, aprendizado, construção de conhecimento, aquisição de habilidades, formação de valores e hábitos, é (ou deveria ser) para todos e qualquer um, com todos e com cada um. Educação inclusiva é pleonasmo.
Após problematizações iniciais, vamos ao ponto: “a inclusão chega ao Ensino Médio”. Sabemos o que isso significa na prática: estudantes que antes não chegavam ao Ensino Médio agora têm acessado esse grau de ensino para se escolarizarem.
São estudantes com diferenças que, em outros tempos, a escola não estava acostumada a lidar. Diferenças, principalmente, no que se refere às condições de desenvolvimento peculiares, como pessoas com deficiência.
Essa é a inclusão que chegou no Ensino Médio. Melhor, estudantes que antes não estavam nem na escola, agora estão avançando em sua escolarização formal.
Por que essa “novidade” no ensino?
Movimentos e encontros mundiais que fomentaram reflexões sobre inclusão e em favor do respeito à diversidade se intensificaram a partir da década de 1990 e impulsionaram vários setores da sociedade a refletir e tomar posição com relação aos processos de exclusão X inclusão de pessoas que, por suas diferenças, não ocupavam seus verdadeiros lugares de direito como cidadãs.
Um lugar em especial foi o espaço escolar. A partir de proposições e perspectivas de que todos podem aprender juntos, considerando os limites e possibilidades de cada um, políticas e legislações, formações docentes apontaram para uma inserção, como direito, de pessoas com deficiência na escola comum.
A partir dessa “abertura” e, em vários casos, surpreendendo as expectativas, todos foram aprendendo: estudantes, docentes, equipe gestora. Tais aprendizagens refletiram no avanço escolar de estudantes aos níveis de ensino mais adiantados, como o Ensino Médio e Ensino Superior.
Se, inicialmente, a presença de crianças com deficiência no Fundamental I tornou-se mais normal e possível, o tempo passou e as crianças cresceram, tornaram-se adolescentes e jovens.
É fato que muitos foram retidos, ou foram “passados” de ano sem aprendizagem, famílias desistiram e cancelaram suas matrículas nas escolas, há muitos descaminhos nessa jornada. Mas é fato, também, que outros desses estudantes chegaram ao Ensino Médio. Daí: “a inclusão chega ao Ensino Médio”.
Mudanças no processo de educação
O que fazer? As perguntas e considerações passaram a ter a mesma base de quando os estudantes chegaram nos primeiros anos da escola: como ensinar? O que vou fazer se não tenho formação? Não era melhor uma escola especial? Ele sabe fazer isso? Está aqui para socializar, não é?
Uma cena vivenciada para ilustrar a prosa. Ano: 2017. Último conselho de classe do ano, calor, cansaço do trabalho acumulado, muitas demandas profissionais e pessoais. Escola pública, 2º ano do Ensino Médio, uns vinte docentes, profissionais da gestão, umas cinco turmas para analisar.
E a decisão sobre a vida escolar dos estudantes. Em dado momento, um estudante vira destaque no Conselho, vamos chamá-lo de Jorge.
Veredito: vai ficar reprovado (novamente no 2º ano) em duas disciplinas, pois “não conseguiu atender ao esperado”, “não resolve as questões adequadamente”, “não entende nada”, “não vai acompanhar o 3º ano”, “não sei o que ele está fazendo aqui”. Não… não… não.
Mas… “mas é tão esforçado”, “mas é responsável”, “mas não tem problema de comportamento”, “mas na minha disciplina ele corresponde”, “mas comigo ele não se saiu tão mal, tem nota pra passar”.
Para situar melhor: o estudante em questão, com Deficiência Intelectual, aluno da escola desde o 1º ano do Ensino Fundamental, acumulou várias retenções, apropriou-se de muitos conteúdos previstos pelo currículo, fez um caminho escolar tendo que provar que podia aprender muitas coisas e outras nem tanto.
O acompanhamento de docentes de apoio do Atendimento Educacional Especializado foi necessário desde o início da escolarização, tanto para ele quanto para os seus professores.
Caso para conselho de classe
Tanto o “não” quanto o “mas”, do parágrafo anterior, pouco efeito teriam para solucionar o caso do Conselho de Classe. Outras questões precisavam ser formuladas:
O que ele não atendeu em relação ao que era esperado pela proposta da disciplina e que, efetivamente, vai fazer falta para o próximo ano escolar? Nós não podemos estabelecer estratégias específicas para sanar tais faltas?
Por que não resolve as questões adequadamente? O que é difícil para o seu entendimento? O enunciado é interpretado por ele? Compreende o que está sendo pedido? Faz qual caminho ou movimento para solucionar a questão? Qual a qualidade dos seus erros?
Não entende nada quando? Em relação a quê? O que ele entende? Como faz sozinho? O que faz com ajuda? Que tipo de ajuda?
Vai acompanhar o quê do 3º ano do Ensino Médio? Precisa acompanhar tudo? Todos acompanham ou aprendem tudo? (Vamos pensar em cada um de nós – o que sabemos do 3º ano?).
Não sabemos o que ele está fazendo aqui? Podemos perguntar para ele. Frequentou a escola até agora e não sabemos o que está fazendo aqui? O que o atrai na escola, o que lhe interessa, em quais áreas demonstra maior desembaraço? Escola para quê? Para quem?
Mas é tão esforçado… Tão responsável… Não tem problemas de comportamento. E se não fosse assim, se fosse ao contrário? Mereceria ser punido pela reprovação? Que ações teriam sido promovidas para garantir outras posturas?
Na minha disciplina corresponde, ele não se saiu tão mal, tem nota para passar… Mas como foi a dinâmica de ensino nessas disciplinas? Houve alguma proposta diferenciada? Como ele demonstra aprender melhor? O que aconteceu para os resultados serem diferentes? De que áreas de conhecimento são as disciplinas com melhor e pior desempenho?
Diagnóstico: Está preciso?
Seguindo o Conselho de Classe… Entre várias ponderações e tensões, um argumento apresentado pela professora de AEE impulsiona uma decisão. Mais ou menos assim: “o Jorge é ‘nosso’ desde a alfabetização, é aluno da escola.
Espaço esse que foi responsável por toda escolarização dele, chegou até aqui, com várias estratégias diferenciadas colocadas em prática para que avançasse e aproveitasse do espaço escolar o que melhor pudesse lhe favorecer, não vamos concluir o que começamos? Só falta o último ano…”.
Veredito: aprovação do Jorge (nas duas disciplinas que eram de reprovação) para o 3º ano do Ensino Médio, com estratégias pensadas coletivamente para o acompanhamento e desenvolvimento do estudante no ano seguinte.
Para não ficarmos sem saber do que se seguiu depois: atualmente cursa uma graduação que envolve a área de aviação. Vai seguindo com ajustes e apoios, com aprendizagens e com limites. Mas vai seguindo.
Tem muito mais desembaraço, autonomia, posicionamento, não deixou de ser o que é, mas os apoios e o crédito nas possibilidades fizeram diferença. A escola fez diferença. O episódio e o caso são reais, para dividir um pouco do que pode ser a inclusão no Ensino Médio.
O que tiramos desse estudo de caso?
Algumas ponderações: nem todos são iguais, há alunos com as mais variadas dificuldades, não há professores de apoio, a escolarização anterior deixou muitas falhas, são realidades.
A organização escolar na qual nos inserimos (ou nos inseriram) é composta, em sua maioria, por componentes curriculares (“caixinhas de conteúdos”) distribuídos em grades de horários, por seriação, reprovação e aprovação, por planejamentos estanques.
Conhecemos a dinâmica escolar padrão, mas não podemos nos deixar aprisionar. O que fazer com “a inclusão que chega ao ensino Médio”? Alguns posicionamentos e considerações gerais podem ser adotados com relação aos estudantes com especificidades.
- as limitações apresentadas devem ser consideradas dentro do contexto dos ambientes da comunidade característicos das pessoas da mesma faixa etária e da mesma cultura do indivíduo – os outros estudantes apresentam que semelhanças e que diferenças em relação a determinado aluno? Como ele é se for comparado à maioria dos seus pares? Vamos ponderar: os limites podem não estar exclusivamente ligados à deficiência.
- as limitações frequentemente coexistem com as potencialidades – o que o estudante já sabe? O que faz bem? Quais seus interesses? Quais suas curiosidades? Em que áreas demonstra desempenho mais satisfatório?
- ao se descrever as limitações é importante desenvolver o perfil dos apoios necessários – como aprende melhor? O que precisa para se comunicar? Que recursos diferenciados podem impulsionar o desenvolvimento e a aprendizagem?
- cada profissional, com sua expertise, colabora para o desenvolvimento de planejamentos que garantam acessibilidade ao que o currículo propõe – é um trabalho conjunto, em rede; professores das disciplinas, professores do atendimento educacional especializado e equipe pedagógica elaboram projetos de ensino, dinâmicas de estudo, apoios específicos, para garantir a aprendizagem de todos.
Conclusão
“As aprendizagens que melhor se estruturam são as que se constituem pelo e no coletivo, nas trocas entre os pares – entre os mais e os menos experientes; que viabilizam modelos, pistas para a aprendizagem, com uma riqueza de possibilidades de compreender e de dialogar sobre o mesmo conceito por perspectivas variadas. Assim, além do aprendizado se caracterizar como uma das principais fontes para a elaboração de novos conceitos, ele é também uma poderosa força que direciona e determina o desenvolvimento dos sujeitos que estão em processo de escolarização.” (BRAUN; MARIN, 2016, p. 198).
Veja também: Educação inclusiva com Danilo Namo
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Referências
BRAUN, Patricia; MARIN, Márcia. Ensino colaborativo: uma possibilidade do Atendimento Educacional Especializado. Revista Linhas. Florianópolis, v. 17, n. 35, p. 193-215, set./dez. 2016. Disponível em: http://www.revistas.udesc.br/index.php/linhas/article/view/1984723817352016193. Acesso em 18/08/2020.
Márcia Marin