Gramática: perspectiva e por que ainda ensiná-la?
Será que ensinar gramática é mesmo desconsiderar a evolução dos estudos linguísticos e torcer o nariz para o que propõem os documentos oficiais da área de Educação, como a Base Nacional Comum Curricular (BNCC)?
Quer saber mais sobre a gramática e os motivos para ainda ensiná-la?
Então, confira o conteúdo sobre o tema!
O que é gramática?
Primeiramente, é importante dizer que existem várias concepções de gramática.
Mas, de modo geral, podemos entendê-la como o conjunto de regras que definem o funcionamento de uma língua.
Como esclarece a professora Irandé Antunes, no livro Muito Além da Gramática: por um ensino de línguas sem pedras no caminho (2007, p. 26):
Irandé aponta, ainda, que é importante perceber o sentido que uma pessoa constrói ao trazer em seu discurso a palavra gramática.
Isso porque poderá, para além da noção acima, referir-se a: um livro, uma perspectiva de estudo, uma perspectiva de norma, uma disciplina.
Então, outra questão importante é: de que perspectiva de gramática se está falando? Vamos conferir!
Perspectivas de Gramática
Quando se fala em gramática, também se está falando da perspectiva de estudo, de regra e de erro a ela relacionada.
Como classifica o linguista Sírio Possenti, na obra Por que (não) ensinar gramática na escola (1996), existem pelo menos três visões de gramática em que esses aspectos estão subjacentes:
Gramática Normativa/Prescritiva
Essa gramática pode ser definida como um conjunto de regras que devem ser seguidas.
Seu objetivo é fazer a pessoa aprender a falar e escrever corretamente. Isso deve ser conquistado a partir do uso da norma culta, também chamada de variedade padrão ou dialeto padrão.
A nomenclatura norma culta está diretamente ligada à ideia de que existe uma comunidade de pessoas que, em tese, teria uma intelectualidade mais elevada frente às que não gozam do mesmo acesso à cultura, poder aquisitivo e, portanto, influência social de prestígio.
Por isso, essa gramática também é conhecida como tradicional, e é ela que ainda influencia predominantemente muitas gramáticas escolares.
Para expressar-se como ocupante de posição privilegiada na sociedade, é preciso manter-se fiel à essa norma.
Daí a ideia de imposição de regras, de uniformidade, homogeneidade linguística. E a necessidade de espelhar-se no modelo literário purista da escrita, por exemplo.
Então, a noção de regra desta perspectiva está ligada à ideia de obrigatoriedade, e erro é tudo aquilo que foge ao padrão prescrito, que, para o estrato social prestigiado, representa fazer “bom uso da linguagem”.
Gramática Descritiva
A gramática descritiva diz respeito ao conjunto de regras que são seguidas pelos falantes de determinada comunidade.
Seu objetivo é descrever e explicar as regularidades de usos linguísticos tais como as pessoas falam. Por isso, ela é também conhecida como gramática de usos.
Neste caso, não há nenhuma pretensão prescritiva. A ideia é explicitar a regularidade nas variações da língua. Por isso, também, admite-se que as línguas mudam e variam social, geográfica e historicamente.
Essa perspectiva adota a noção de regra como recorrência, constância, e de erro como tudo aquilo que não faz parte de nenhuma das variantes possíveis de uma língua.
Gramática Internalizada
A gramática internalizada é compreendida como um conjunto de regras que o falante domina, porque todo falante nasce com uma noção intuitiva dessa gramática. Seu objetivo é estudar as leis gerais constitutivas de uma língua, sua estrutura linguística imutável.
Os estudiosos da gramática gerativa, os gerativistas, debruçam-se a lançar: “[…] hipóteses sobre os conhecimentos que habilitam o falante a produzir frases ou sequências de palavras de maneira tal que essas frases e sequências são compreensíveis e reconhecidas como pertencendo a uma língua” (POSSENTI, 1996, p. 69).
Nessa noção, regra é o que há de universal e acontece em todas as línguas, e erro é tudo o que é agramatical, ou seja, tudo o que foge à lógica dos universais linguísticos.
Você já parou para pensar por que é improvável que alguém fale: “Sobre aprendi as hoje eu concepções gramática de” (sentença agramatical), mas considere completamente natural falar: “Hoje aprendi as concepções de gramática”?
O falante sabe que existe um encadeamento lógico na língua, que suas sentenças não são apenas uma justaposição aleatória de palavras, ainda que não saiba explicar por quê.
Isso ocorre devido às regras de construções sintagmáticas, necessárias à inteligibilidade dos enunciados de uma língua.
Essas regras vão se tornando intuitivamente reconhecidas no convívio social, ainda que não passe pelo processo de escolarização.
Por que ainda é preciso ensinar gramática?
As concepções de gramática apresentadas, bem como suas noções de regra e erro subjacentes, não são novas, mas há ainda muitas pessoas que as desconhecem.
E esse desconhecimento tem vários motivos:
- essa discussão está quase restrita aos(às) estudiosos(as) da área de Linguagem, notadamente os acadêmicos;
- muitas vezes, isso é novidade para o(a) professor(a) da Educação Básica, por não ter tido esse acesso nem em sua formação inicial nem nas formações continuadas;
- a maioria das pessoas, como pais/mães/responsáveis pelos(as) alunos(as), vivenciaram uma escolarização que privilegiou o ensino da gramática normativa.
Este último caso é, inclusive, um dos calos do(a) professor(a) de língua. Porque é bastante comum ouvi-los dizer: “Se eu não ensinar gramática, a gestão e os pais reclamam”. E isso ocorre pelo motivo já citado. Também porque há alguns equívocos em discursos dessa natureza.
O problema não é não ensinar a variedade padrão, pelo contrário: deve-se também ensiná-la.
A questão é não ensinar apenas essa variedade, tanto porque ela não é o único objeto de estudo de uma língua quanto porque assim se priva o(a) aluno(a) do conhecimento da riqueza de concepções e manifestações de uma língua.
Ao trabalhar as concepções de gramática, o(a) professor(a) estará desenvolvendo todas as Competências Gerais da Base Nacional Comum Curricular (2018):
Como é possível perceber, refletir sobre as noções de gramática, tanto na iniciação ao ensino de línguas quanto de maneira transversal a alguns temas, auxilia os(as) alunos(as) a:
- Considerar-se como ser sociocultural e respeitar sua interação com o outro em diferentes manifestações linguísticas: as competências Comunicação, Empatia e Cooperação, Autoconhecimento e Autocuidado, Responsabilidade e Cidadania.
- Reconhecer o pluralismo de concepções, incluindo desde as perspectivas populares às científicas: competências Conhecimento, Pensamento Crítico e Criativo e Repertório Cultural.
- Analisar as bases em que se sustentam alguns discursos quando se reflete sobre os fenômenos da língua: as competências Argumentação, Cultura Digital, Trabalho e Projeto de Vida.
Conclusão
Espero que você tenha compreendido que ensinar gramática também serve de base para o desenvolvimento do(a) aluno(a) como ser integral. É por isso que ainda precisamos utilizá-la como objeto de problematização.
Sugiro que você continue acompanhando o e-docente. Em breve, trataremos do lugar da gramática na análise linguística e apresentaremos sugestões mais específicas de trabalho no Ensino Fundamental e no Ensino Médio.
A seguir, confira uma lista de leituras com exemplares das concepções de gramática apresentadas!
Para saber mais
AZEVEDO, Isabel Cristina Michelan de; TINOCO, Glícia Marili Azevedo de Medeiros. Letramento e argumentação no ensino de língua portuguesa. Entrepalavras, Fortaleza, v. 9, n. 1, p. 18-35, jan-abr/2019.
ANTUNES, Irandé. Muito além da gramática: por um ensino de línguas sem pedras no caminho. São Paulo: Parábola, 2007.
LIMA, Rocha. Gramática normativa da língua portuguesa. 49. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2011.
MIOTO, Carlos; SILVA, Maria Cristina Figueiredo; LOPES, Ruth. Novo Manual de Sintaxe. São Paulo: Contexto, 2013.
PERINI, Mário A. Gramática descritiva do português brasileiro. Petrópolis, RJ: Vozes, 2016.
POSSENTI, Sírio. Segunda parte. In:______. Por que (não) ensinar gramática na escola / Sírio Possenti — Campinas, SP: Mercado de Letras: Associação de Leitura do Brasil, 1996. (Coleção Leituras no Brasil). p. 58-95.
Gostou de saber mais sobre a gramática e os motivos para ainda ensiná-la? Então, confira nosso conteúdo sobre o que é letramento!
Izabela Pereira de Fraga é doutoranda e mestre em Educação (PPGEdu/UFPE), na linha de pesquisa Educação e Linguagem, investigando práticas de letramento acadêmico. É também licenciada em Letras Português e Espanhol (UFRPE). Atua como revisora de textos em português. Tem experiência com formação inicial e continuada de professores da Educação Básica com ênfase na área de Língua Portuguesa. É integrante do Grupo de Pesquisa em Alfabetização, Linguagem e Colonialidade (GPEALE), vinculado à Universidade Federal de São João Del-Rei (UFSJ) e da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e registrado no CNPq. E-mail: izabela.fraga@ufpe.br