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Memória e Aprendizado Escolar: Propostas da Neuroeducação

23 de outubro de 2025,
E-docente
Memória e Aprendizado Escolar Propostas da Neuroeducação

A Importância Essencial da Memória no Nosso Dia a Dia

Andamos, falamos, comemos, escrevemos, criamos, estudamos, ligamos para os amigos e fazemos tantas outras coisas em nosso dia a dia, como se fosse a coisa mais natural do mundo, sem nos atentarmos que um dia aprendemos e memorizamos como fazer tudo isso. Logo, precisamos de nossa memória para tudo, inclusive para o Aprendizado Escolar. Basicamente, a memória funciona registrando nossas experiências mais importantes, e essas vivências acabam moldando nosso comportamento. Como disse Izquierdo (2004, p. 10): “[…] cada um de nós é quem é porque tem suas próprias memórias”. Frank e Landeira-Fernandes (2006) explicam que a memória é como uma máquina de alta tecnologia.

Como a Memória se Divide: Classificação por Tempo e Conteúdo

Podemos dividir a memória de duas formas: pelo tempo e pelo conteúdo. Pelo tempo, temos a memória de curtíssimo prazo, que funciona num piscar de olhos (milissegundos) e costuma ser mais sensorial; a de curto prazo, que dura alguns minutos, horas ou até dias; e a memória de trabalho (ou operacional), que funciona como “a internet” da memória de curto prazo, permitindo que manipulemos as informações em tempo real. Ela nos mantém ligados no mundo, ajudando a entender, relacionar as coisas e operacionalizar nosso pensamento de forma coerente; e por último, a de longo prazo, que armazena informações por meses ou até por uma vida inteira (McGaugh, 2000).

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Já quando falamos de conteúdo, a memória se divide entre: declarativa (que pode ser chamada também de memória consciente, ou explícita) e não declarativa (inconsciente ou implícita) (Izquierdo, 2004).

Memória Declarativa (Consciente) vs. Não Declarativa (Inconsciente)

A memória declarativa se divide em: episódica, que é como um álbum de fotos do passado – cheia de detalhes de onde e quando as coisas aconteceram; e semântica, que funciona como o dicionário interno que usamos no presente: um baú de informações sobre o mundo, incluindo vocabulário, regras e conceitos culturais (Izquierdo, 2002).

Agora, a memória não declarativa não depende do nosso esforço consciente, está ligada à memória emocional e procedimental, ou seja, nossa memória das emoções, do movimento e de nossos hábitos, como andar de bicicleta ou escovar os dentes, por exemplo (Frank; Landeira-Fernandes, 2006).

As Três Etapas da Memória: Codificação, Consolidação e Evocação

Além disso, a memória passa por três etapas (Fiori, 2008): a codificação, que é quando o cérebro capta a informação e a prepara para ser armazenada; a consolidação, responsável pela fixação da memória no sistema nervoso; e a evocação: quando o cérebro resgata as informações guardadas.

Onde as Memórias são Armazenadas: Córtex, Hipocampo e Amígdala

A memória é algo extremamente complexo, e o que se sabe até o momento é que fragmentos das informações que são captados ficam espalhados pelo nosso córtex e várias regiões neurológicas trabalham em diálogo para que esse sistema de armazenamento e evocação seja feito de forma eficiente.

Não há um local específico onde as memórias ficam armazenadas em Nosso Sistema Nervoso Central (SNC). No entanto, temos algumas estruturas neurais fundamentais para o funcionamento da memória. Uma delas é o hipocampo. Podemos dizer que ele “é a estrela do show”, cuidando tanto da formação quanto da evocação das memórias (Izquierdo, 2004).

Outra é a amígdala (não a da garganta, mas a do cérebro), que funciona como uma espécie de “selo de aprovação” do que deve ser memorizado. Ou seja, é a emoção que “chancela” nossa memória; por isso dificilmente esquecemos acontecimentos marcados por emoções, sejam elas consideradas por nós, boas ou ruins. Dificilmente alguém se lembra do que comeu no dia 10 do mês passado, mas, provavelmente, se lembra do que comeu no jantar de noivado ou de comemoração do nascimento do filho há 20 anos (Fink et al., 1996; McGaugh, 2000).

Memória como Criação e a Ocorrência de Falsas Memórias

Outro ponto importante é que, quando lembramos de algo, não estamos “puxando de uma gavetinha uma foto exata do que aconteceu”, mas sim, a partir de fragmentos do que o cérebro armazenou do que vivenciamos, o sistema cria algo novo o mais próximo possível do que foi vivido.

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Izquierdo (2002) enfatiza que nossa memória pessoal e coletiva descarta o trivial e, às vezes, incorpora fatos irreais. Na verdade, a memória é um mecanismo vivo, em que nossas lembranças, contadas e recontadas, fazem parte de uma narrativa subjetiva. Como enfatiza Sacks (2013, on-line): “[…] a memória é dialógica e nasce não só da experiência direta, mas também da intercomunicação de muitas mentes”. Ou seja, a memória é sempre uma criação da mente, o cérebro preenche as lacunas do que ele não tem mais armazenado com o que é mais plausível diante do que ele precisa resgatar.

Entretanto, por ser uma criação, e não uma fotografia exata, as informações nunca são precisas, e é aí que entram as falsas memórias, algo muito comum em nosso dia a dia. Quem nunca, por exemplo, ao ver uma foto antiga, foi surpreendido pela cor do vestido usado numa festa em que, na lembrança, o vestido era de uma cor e ao, ver a foto, viu que era de outra?

A Importância do Esquecimento para a Memória de Longo Prazo

No livro A arte de esquecer, Iván Izquierdo (2004) coloca que tão importante quanto a memória é o esquecimento. Seria impossível uma vida em que lembrássemos absolutamente de tudo o que nos aconteceu com todo requinte de detalhes. Levaríamos uma vida toda para recordarmos o que de fato vivemos. Por isso, o cérebro potencializa o que é mais relevante e mais utilizado e compila os outros fatos, de forma que lembramos deles mais como uma impressão, um “trailer” do que aconteceu, do que, de fato, do acontecimento na íntegra (Lent, 2010).

Memória e Aprendizado Escolar: Estratégias da Neuroeducação

Se somos quem somos devido às nossas memórias, então ela está ligada a tudo, inclusive à aquisição de conteúdos acadêmicos. Mas, o que é importante destacarmos nessa questão é o quanto podemos favorecer ou não a consolidação e evocação das memórias de nossos estudantes.

O Papel da Emoção e do Vínculo Afetivo na Consolidação da Memória

Como vimos, a memória é potencializada pela emoção, logo, aulas chatas, sem nada que instigue a curiosidade e a vontade de aprender, ou então, ambientes pedagógicos ameaçadores, com professores rudes, excesso de cobrança e muita competitividade, não ajuda em nada a consolidação da memória. Por outro lado, vínculo afetivo forte com nossos estudantes, ambiente acolhedor e aulas divertidas, leves, com diversas estratégias só contribuem para a consolidação da memória dos conteúdos que queremos que nossos alunos aprendam.

Estratégias Pedagógicas para Potencializar a Memória (Priming e Movimento)

Outra estratégia boa para potencializar a memória é associarmos os novos conteúdos que queremos ensinar com conteúdos ou repertórios que os estudantes já tenham, pois, quando fazemos isso, é como se criássemos uma forma de o novo conteúdo “pegar uma carona” em redes neurais já estruturadas devido a conteúdos antigos.

Com isso podemos criar gatilhos ou pistas para a evocação da memória, o que, na Neurociência, chamamos de priming. Por exemplo, ao ensinar fração, em vez de tentar explicar pela lógica matemática, podemos comparar as frações com as divisões dos pedaços de uma pizza: ¼ = um pedaço de uma pizza que está dividida em 4 pedaços; 2/8 = dois pedaços de uma pizza que está dividida em 8 pedaços e assim por diante. Com isso, o estudante, ao lembrar do desenho da pizza dividida, lembrará automaticamente do conteúdo de fração associado a ele.

Associar conteúdos a movimentos também é bem interessante, pois a memória não declarativa (inconsciente) é um tipo de memória mais primitiva por ser processada em regiões subcorticais e mais antigas em nosso sistema nervoso. Sendo assim, somos programados para aprendermos movimentos e hábitos rapidamente. Portanto, se associamos um conteúdo a um movimento ou a uma coreografia, tendemos a potencializar a memória, pois o movimento em si passa ser um priming para a evocação do conteúdo.

Tenho um amigo pedagogo, chamado Mauro Pereira, que baseia sua metodologia em Neuroeducação e ensinou os Estados do Brasil para as crianças do Ensino Fundamental Anos Iniciais através de música criada por ele associada à coreografia. Eles imaginam um grande mapa do Brasil em sua frente e fazem gestos específicos com as mãos na localização espacial onde seria um determinado Estado enquanto cantam. Esse tipo de técnica funciona mesmo!

A Necessidade do Treino para a Memória se Tornar de Longo Prazo

Além de tudo isso, precisamos lembrar que, para uma memória virar de longo prazo, ou seja, definitiva, é necessário treino. As memórias de longo prazo são modificações nas redes neurais, e isso leva tempo para acontecer. Portanto, quanto mais falamos, lemos, fazemos atividades, discutimos e pensamos sobre um assunto, mais fortalecemos os caminhos para que a memória de curto prazo se torne de longo prazo.

Fatores Ambientais e Biológicos que Influenciam a Memória: Sono e Trauma

Não menos importante é a influência do ambiente da sala de aula e da rotina diária das crianças para que a memória seja mais ou menos potencializada. Uma sala de aula silenciosa, com uma temperatura agradável e sem grandes distratores visuais deixará o aparato biológico das crianças mais confortável e relaxado para focar a atenção no que é importante na aula. Isso ajudará na codificação da memória. Da mesma forma, o que a criança come, o ambiente socioemocional em que ela vive e a quantidade de horas de sono farão uma diferença homérica no aprendizado.

Pesquisas mostram que crianças vítimas de violência ou com traumas profundos podem desenvolver sérios problemas de memória e, por consequência, de aprendizagem (Borges, 2009; Passarela, 2010). O sono é outra questão, pois, quando dormimos produzimos melatonina, um hormônio fundamental para limpar nosso cérebro à noite e para a consolidação da memória. O que estudamos de dia, consolidamos à noite e, para isso, precisamos de pelo menos 6 horas de sono diários. Pesquisas mostram uma significativa relação entre problemas ligados ao sono, diminuição do rendimento acadêmico e dificuldade na memória (Santos, 2022).

Considerações Finais

Memória e aprendizado são uma via de mão dupla. Sem memória não há como nosso aparato neurológico processar as informações recebidas pelo meio. A Neuroeducação vem se debruçando na compreensão dos processos cognitivos relacionados ao aprendizado, sendo a memória, um dos temas mais proeminentes. Sabendo o que pode favorecer a memória, do ponto de vista fisiológico, podemos fazer com que nossos alunos aprendam mais a partir de estratégias específicas, como algumas relatadas aqui.

Espero que este texto instigue o leitor a buscar mais informações sobre essa temática, pois trata-se de um assunto muito complexo e profundo. Ele requer, de nós educadores, um tempo maior de dedicação, já que lidamos com aprendizagem. Entendermos o mecanismo da memória só nos ajudará em sala de aula.

Minicurrículo da autora  

Profa. Dra. Viviane Louro é pianista, educadora musical e neurocientista. Atua como docente do Departamento de Música da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), onde, além de lecionar, coordena os seguintes projetos: Programa para Saúde Mental dos Estudantes de Música (Probem) do Centro de Artes e Comunicação (CAC); Liga Acadêmica de Neurociências Aplicada (Liana); Especialização em Neurociências, Música e Inclusão; e Comissão de Humanização e Saúde Mental da UFPE. É autora de 8 livros na área de Educação Musical Inclusiva e palestrante sobre as áreas de Neurociências da Música, Psicomotricidade e Música e Educação Musical Inclusiva. Atualmente, está se especializando em Criminal Profile e Psicologia Investigativa.  

Referências 

BORGES, J. A. D. Funções cognitivas e Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) em meninas vítimas de abuso sexual. Aletheia. Vol. 29, pg. 88-102, jan./jun., 2009.  

FINK, G. R. et al. Cerebral representation of one’s own past: neural networks involved in autobiographical memory. Journal of Neuroscience. vol. 16, pp. 4275-4282. EUA, Washington DC, 1996.  

FIORI, N. As neurociências cognitivas. Tradução: Sonia Fuhrmann. Rio de Janeiro: Vozes, 2008.  

FRANCK, J.; J. LANDEIRA-FERNANDEZ. Rememoração, subjetividade e as bases neurais da memória autobiográfica. Psic. Clin. Vol.18, n.1, P.35 – 47. Rio de Janeiro, 2006.  

IZQUIERDO, I. Memória. Porto Alegre: Artmed, 2002. 

IZQUIERDO, I. A Arte de Esquecer. Cérebro, Memória e Esquecimento. Rio de Janeiro: Vieira & Lent, 2004.  

LENT, R. Cem bilhões de neurônios?: conceitos fundamentais de neurociências. 2ª Ed. São Paulo: Editora Atheneu, 2010.  

MCGAUGH, J. Memory – a century of consolidation. Science, Vol. 287, pg. 248-251. EUA, Washington DC, 2000.  

PASSARELA, C. M. et al. Revisão sistemática para estudar a eficácia de terapia cognitivo-comportamental para crianças e adolescentes abusadas sexualmente com transtorno do estresse pós-traumático. Revista Psiquiatria Clínica. Vol. 37(2), pg. 60-65, 2010.  

SACKS, O. Quando as lembranças nos pregam peças. Tradução: Clara Allain. Folha de São Paulo – ilustríssima. Disponível em: < https://m.folha.uol.com.br/ilustrissima/2013/05/1284622-quando-as-lembrancas-nos-pregam-pecas.shtml> em 25/05/2013. Acesso em 24/12/2024. 

SANTOS, T. L. B. et al. O impacto da qualidade do sono na memória em escolares. Revista Neurociências, v. 30, p. 1-17, 2022.  

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