MENU

Onde estão as reflexões e práticas sobre Saúde Única no Currículo da Educação Básica? 

26 de dezembro de 2024
E-docente
Saúde única na educação básica

Costumamos ouvir nas reuniões pedagógicas e de planejamento escolar sobre a importância de integrar diferentes áreas do conhecimento para promover aprendizagens mais conectadas e trabalhos interdisciplinares. No entanto, sabemos o quanto isso é exigente, trabalhoso e complexo de colocar em prática, especialmente em um sistema educacional onde cada área do saber ainda segue dentro da sua própria “caixa”, muitas vezes resistindo às possibilidades de práticas pedagógicas mais abertas e integradas. 

Muitos professores/as em atuação tiveram uma formação inicial bastante fechada e focada em cada campo separadamente, o que acaba contribuindo para uma atuação mais hermética e isolada. Essa resistência não é exclusividade do campo educacional. No campo da Saúde, por exemplo, também é comum que as tomadas de decisão desconsiderem as conexões com o Meio Ambiente e a Saúde Animal. Nesse contexto, surge o conceito de Saúde Única, que propõe uma forma de pensar e agir conectando as áreas de Saúde Humana, Saúde Animal e Saúde Ambiental, sem qualquer hierarquização.

Fonte da imagem: Caderno Pedagógico n.6, página 91. Autor: Danilo Carvalho 

 Do inglês, o conceito de “One Health” (Saúde Única) busca prevenir e mitigar ameaças à saúde pública de maneira mais eficaz e sustentável, incentivando uma visão multiprofissional e integrada. Apesar de não ser um conceito novo, essa forma de pensar ganhou força apenas a partir dos anos 2000, sendo adotado por organizações internacionais como a Organização Mundial da Saúde (OMS), a Organização Mundial de Saúde Animal (OIE) e a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). 

Diante disso, pergunto: 

  • Você sabe onde estão as reflexões sobre Saúde Única dentro do Currículo da Educação Básica? 
  • Que práticas escolares incentivam os alunos a pensar na integração dessas três áreas de forma interconectada e sem hierarquia? 
  • Em que momentos reunimos professores de diferentes áreas do conhecimento para elaborar propostas pedagógicas com base na visão de Saúde Única? 

Talvez suas respostas para essas três perguntas sejam negativas — e tudo bem (por enquanto). Na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) de 2018, publicada 18 anos após o conceito de Saúde Única ser introduzido pelas Organizações Mundiais, não há menção direta à Saúde Única. Das 15 vezes em que a palavra “Saúde” aparece na BNCC, nenhuma delas aponta para a necessidade de pensar Saúde Humana, Saúde Animal e Saúde Ambiental de forma integrada e sistêmica. 

Leia mais: Para além da sala de aula: como explorar ao máximo a potência dos Espaços Não Formais de Aprendizagem? 

Sabemos, é claro, que a mudança de olhares e práticas educacionais é um processo gradual. E é exatamente por isso que o convite para refletir sobre como iniciar esse movimento na sua escola é tão importante. Se puxarmos da memória algumas das pandemias dos últimos anos, podemos citar a SARS (2002-2003), a gripe aviária (H5N1) e a gripe suína (H1N1). De forma ainda mais impactante, tivemos a pandemia de COVID-19 (2019-2021), que reforçou o papel essencial da Saúde Única. Ficou evidente a ligação entre a destruição de ecossistemas naturais, o comércio de animais silvestres e o surgimento de patógenos emergentes. 

Diante desse contexto, governos e instituições de pesquisa ao redor do mundo passaram a adotar a Saúde Única de forma mais integrada na criação de políticas de prevenção e resposta às ameaças à saúde global. Se essa abordagem é essencial para o campo da Saúde, por que não trazê-la para a Educação? Essa reflexão é um convite para que possamos repensar nossas práticas pedagógicas e promover uma formação mais integrada e conectada dentro dos nossos espaços escolares. 

E na escola, o que podemos fazer? 

No capítulo 10 Caderno Pedagógico n.6 , “Saúde e bem-estar: pilares para uma vida plena e equilibrada”, o texto traz duas interessantes proposta para se trabalhar Saúde Única na escola de forma que estimule nos estudantes múltiplos saberes e habilidades: 

  1. Um novo olhar: que tal convidar os estudantes para se aproximarem do conceito de Saúde Única e realizar uma exposição fotográfica com imagens do entorno escolar que merecem um olhar cuidadoso da perspectiva da Saúde Única? Os jovens poderiam discutir quais ações e projetos seriam necessários para mudar a realidade observada nas fotos e como a integração da saúde animal, humana e ambiental poderia colaborar para essa mudança de realidade. Fotos de bueiros transbordando, esgoto correndo a céu aberto, cavalos se alimentando de lixos, lixões abandonados são exemplos de imagens possíveis. Esse tipo de ação estimula nos alunos uma nova visão do entorno escolar, indo além das imagens dos problemas já naturalizados pela rotina. É olhar para o entorno escolar de forma atenta, crítica e propositiva. Pensar e propor soluções é inserir o estudante como protagonista dos processos da vida em sociedade.  
  1. Jovens legisladores: uma outra proposta interessante nesse campo é estimular os estudantes a atuarem como legisladores, seguindo o exemplo do programa “Parlamento Jovem Brasileiro”, da Câmara dos Deputados. Os jovens podem formar grupos de trabalho para criar leis que visem às mudanças na sociedade a partir dos problemas e/ou situações vivenciadas. Esse tipo de atividade pode ser potencializado com um trabalho interdisciplinar. Imagine a potência de uma iniciativa como essa ao unir diferentes campos, como Linguagens, Ciências Humanas e Ciências da Natureza? Certamente, muito material interessante será produzido e transformações na forma de enxergar o mundo serão estimuladas. 

Para além dessas dicas, que tal pensar também em trabalhos com: 

  1. A vigilância e controle de zoonoses: Como está sendo realizado o monitoramento e o controle de doenças transmissíveis entre animais e humanos? Podem ser utilizadas doenças como raiva, febre amarela, leptospirose, febre Oropouche, Mayaro e outras doenças emergentes como plano de fundo para um debate interconectado. Essa atividade pode abordar os patógenos e seus vetores, assim como o campo ambiental, considerando questões ecológicas e urbanas que favorecem o estabelecimento dessas doenças. Além disso, podem e devem ser incluídas as questões sociais relacionadas à ocupação de diversos espaços nas cidades e em seus arredores, o que aproxima as populações humanas de animais silvestres — reservatórios naturais de alguns patógenos — e promove a disseminação de determinadas doenças. 
  1. Resistência a antibióticos: o uso inadequado de antibióticos tem causado um problema mundial de resistência de patógenos a esses medicamentos. Promover a pesquisa e a sistematização de propostas que estimulem a redução do uso indiscriminado de antimicrobianos no tratamento de populações humanas e animais é uma medida fundamental a ser implementada. Isso permite refletir sobre os desafios relacionados às bactérias e demais microrganismos super-resistentes. Além disso, é essencial considerar o descarte adequado de medicamentos vencidos, uma vez que essa prática está diretamente ligada à Saúde Ambiental e ao impacto dessas substâncias nos ecossistemas aquáticos. 
  1. Segurança alimentar: a discussão da segurança alimentar com foco na Saúde Única permite uma abordagem interdisciplinar, integrando praticamente todas as áreas. Isso possibilita que os estudantes reflitam sobre a importância da produção e consumo de alimentos seguros e sustentáveis, as implicações do uso de agrotóxicos e antibióticos na teia alimentar e o papel das zoonoses no contexto de Saúde Pública. Dessa forma, o tema contribui para a compreensão das relações entre os alimentos que consumimos, o ambiente onde vivemos e as doenças que nos afetam. Além disso, abordar a segurança alimentar na perspectiva da Saúde Única permite ampliar o olhar sobre as políticas públicas e os direitos fundamentais, destacando a alimentação segura e saudável como um direito humano. Essa abordagem na escola fortalece valores essenciais, como responsabilidade socioambiental e o respeito ao bem-estar animal, humano e ambiental. 

Conclusão

Mesmo considerando que as orientações curriculares nacionais ainda não trazem a temática de Saúde Única como proposta para trabalho nas escolas, é fundamental que implementemos essa forma de ler, pensar e agir sobre o mundo, conectando as esferas consideradas pela visão da Saúde Única. A inserção do conceito de Saúde Única na escola é essencial para a formação de cidadãos críticos, conscientes e engajados na preservação da saúde humana, animal e ambiental.  

Leia mais: Saiba como o professor pode aumentar a sua produtividade: uma abordagem humana 

Trabalhos que contemplem essa abordagem promoverão uma visão integrada dos desafios globais, permitindo que os estudantes compreendam as relações entre as ações humanas, a preservação dos ecossistemas e a prevenção de doenças emergentes, reforçando ainda mais, o lugar que a escola ocupa como um espaço de conscientização e transformação social.  

Referências

BRASIL. Base Nacional Comum Curricular: Ensino Médio. Brasília, DF: Ministério da Educação, 2018. 

MACKENZIE, J. S.; JEGGO, M. The One Health approach — why is it so important? Tropical Medicine and Infectious Disease, v. 4, n. 2, p. 1-4, 2019. 

LERNER, H.; BERG, C. The concept of health in One Health and some practical implications for research and education: what is One Health? Infection Ecology & Epidemiology, v. 6, n. 5, p. 7, 2015. 

RABINOWITZ, P. M.; KOCK, R.; KACHANI, M.; KUNKEL, R.; THOMAS, J.; GILBERT, J.; et al. Toward proof of concept of a One Health approach to disease prediction and control. Emerging Infectious Diseases, v. 19, n. 12, 2013. 

OSMO, A.; SCHRAIBER, L. B. O campo da Saúde Coletiva no Brasil: definições e debates em sua constituição. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 24, n. 1, p. 14, 2015. 

COUTO, R. M.; BRANDESPIM, D. F. A review of the One Health concept and its application as a tool for policy-makers. International Journal of One Health, v. 6, n. 1, p. 7, 2020. 

Minibio 

Danilo Carvalho possui graduação em Licenciatura Plena pela Universidade Federal de Mato Grosso, Mestrado e Doutorado em Biologia Animal pela Universidade Federal de Pernambuco e pós-doutorado pela Texas A&M University (Estados Unidos). É professor e pesquisador da Universidade Federal de Pernambuco, atuando no Colégio de Aplicação da UFPE e no Mestrado Profissional em Ensino de Biologia/CAV-UFPE. Desenvolve atividades direcionadas para o campo do Ensino e Pesquisa em Biologia e acumula experiências na Formação de Professores, Consultoria Educacional, Coordenação Escolar, Acadêmica, Estágio e Direção Escolar. É revisor de periódicos científicos, escritor de artigos e demais textos acadêmicos. 

Compartilhar: