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Alfabetizar ou não na Educação Infantil: uma questão mal colocada 

9 de janeiro de 2025
E-docente
educação infantil

Educação Infantil, no Brasil, é o segmento da escolaridade voltado aos bebês, crianças bem pequenas e crianças pequenas (BRASIL, 2017). Obrigatória para aqueles que completam 4 ou 5 anos de idade até 31 de março do ano da matrícula, ela suscita variados debates entre pais, educadores e pesquisadores do tema. Entre eles, há uma questão recorrente: deve-se ou não alfabetizar na Educação Infantil? 

Já dizia Emilia Ferreiro… 

 A pesquisadora e psicolinguista argentina que representa um dos maiores ícones da alfabetização mundial, Emilia Ferreiro, ao debater essa questão, já afirmou que se trata de um questionamento improcedente, já que “esta pergunta, assim proposta, tem como base um pressuposto: são os adultos que decidem como e quando vai ser iniciado esse aprendizado” (Ferreiro, 2001, p. 96).  

 Respostas simplistas a essa questão, de acordo com Ferreiro, denotariam a crença nesse pressuposto equivocado e poderiam levar a ações pedagógicas impositivas e pouco reflexivas.  

 Por um lado, se a crença for que a Educação Infantil é o momento certo para alfabetizar os estudantes, corre-se o risco de transformar salas de aula de crianças pequenas em ambientes de treinos visuais, auditivos e motores. Nesses contextos, as necessidades da primeira infância são ignoradas e o próprio sentido de escola fica em suspenso, como se aquele segmento não se constituísse como um fim em si mesmo, mas apenas como um meio de preparação para o segmento seguinte, o Ensino Fundamental. Essa ideia já influenciou, em épocas pretéritas, inclusive o nome dessa etapa, que já se chamou “pré-escola”, ou seja, algo que não era uma escola “de verdade”, mas apenas uma preparação, algo prévio a ela. 

 Por outro lado, a ideia de que não se deve alfabetizar na Educação Infantil pode levar à proibição da convivência das crianças pequenas com a língua escrita. Nesse contexto, toda e qualquer manifestação escrita seria evitada, não obstante o eventual interesse ou curiosidade das crianças. O banimento total das culturas do escrito, além de isolar as crianças de uma realidade que é inerente à sociedade em que vivemos, torna a escola um ambiente hermético e dissociado das vivências cotidianas de professores e estudantes. 

Culturas do escrito e experiências 

 É preciso lembrar, quando se pensa sobre esse assunto, que muitas crianças convivem com as diversas culturas do escrito desde muito pequenas. Um bebê que escuta leitura de histórias no ambiente da família ou da escola; uma criança de 2 anos que simula a leitura de um livro, folheando-o e narrando seu enredo; uma criança de 3 anos que escreve, a seu modo, os nomes dos familiares; uma criança de 4 anos que busca uma informação na internet, identificando os links que deseja; ou uma criança de 5 anos que escreve, à sua maneira, um bilhete a alguém para pedir algo que deseja são alguns poucos exemplos das inúmeras situações que as crianças podem viver cotidianamente, estabelecendo relações com as culturas do escrito.  

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 Participar dessas práticas de leitura e escrita é um direito que não pode ser relegado ao acaso, muito menos ser acessível somente a alguns grupos sociais. Cabe à escola de Educação Infantil garantir esse direito, propiciando não apenas a participação de todas as crianças em situações como essas, mas também planejando-as, criando contextos com intencionalidade pedagógica, em que os pequenos possam vivenciar a situação de leitores e escritores – ainda que não saibam ler e escrever no sentido convencional do termo – e se questionar quanto ao que é a escrita, o que ela representa e como representa. 

 Se a Educação Infantil é, como preconiza a BNCC, um segmento que deve oferecer às crianças a vivência de experiências em diversos campos, ela não pode se furtar às vivências das variadas culturas do escrito. 

De que criança e de que alfabetização falamos? 

Para tomar a decisão de incluir as vivências com as culturas do escrito nos diversos contextos da Educação Infantil, é preciso ter em mente qual a concepção de infância e qual a concepção de alfabetização que nos norteia. 

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 Quando mencionamos a criança que frequenta as turmas de Educação Infantil, estamos pensando em uma pessoa ativa, “pensante”, “brincante” e que é, também, um sujeito de direitos. Essa criança tem o direito de ser respeitada enquanto indivíduo, enquanto interlocutor intelectual do adulto, enquanto alguém que reflete, questiona, decide, infere, deduz, conclui etc. É também alguém que precisa ter asseguradas as plenas condições para seu desenvolvimento físico, cognitivo e socioemocional. É a protagonista de seu processo de aprendizagem e está imersa em uma sociedade grafocêntrica, onde a leitura e a escrita ocupam múltiplos espaços e funções sociais. 

 Já com relação à alfabetização, entendemos que ela é um processo que se dá, primordialmente, por meio do contato da criança com as culturas do escrito. Contato este mediado pelo professor, que criará situações de aprendizagem potentes, garantindo condições didáticas e intervenções que favoreçam a aquisição da linguagem escrita (contemplando tanto seus aspectos notacionais, quanto os discursivos) por parte dos estudantes.  

Qual é, então, a função da Educação Infantil nesse contexto? 

  Partindo dessa concepção de criança e de alfabetização, considerando as culturas do escrito e tendo em mente o fato de que os adultos não detêm o controle total da aprendizagem das crianças, é possível pensar em respostas à pergunta-título desse texto. 

 Evidentemente, não é função da Educação Infantil alfabetizar no sentido tradicional do termo. Afinal, a insistência em repetições mecânicas, em treinos motores e audiovisuais fere a concepção de criança como um sujeito cognoscente e ativo. Também é uma prática que considera a língua escrita como um código de transcrição da oralidade, e não um sistema de representação com características próprias, que contempla não apenas relações grafemas-fonemas, mas múltiplos aspectos que diferenciam a linguagem que se usa para escrever, daquela que se usa para falar.

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 Por outro lado, também não se pode, na Educação Infantil, excluir as múltiplas culturas do escrito, já que a alfabetização é entendida como um processo, e os diferenciados campos de experiência são desejáveis para o pleno desenvolvimento das crianças. É preciso considerá-las como pessoas que já vivenciam a escrita em suas múltiplas formas, e que têm o direito de experimentarem comportamentos leitores e escritores, mesmo enquanto ainda não sabem ler e escrever no sentido convencional do termo. 

  Assim, podemos dizer que é a Educação Infantil não só pode, como deve alfabetizar, se entendermos a alfabetização como o processo de inserir as crianças, de modo cada vez mais planejado e com intencionalidade, em experiências diversificadas, que contemplem as práticas sociais da linguagem escrita.  A escola de Educação Infantil pode e deve se constituir, como diria a educadora argentina Delia Lerner (2002), em uma microssociedade de leitores e escritores. 

Referências  

BRASIL, Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: SEB/MEC, 2017. 

LERNER, D. Ler e escrever na escola: o real, o possível e o necessário. Porto Alegre: Artmed, 2002. 

FERREIRO, E. Reflexões sobre alfabetização. São Paulo: Cortez, 2001. 

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