Como integrar o debate sobre a vacinação no currículo escolar?
Refletir sobre a integração do debate referente à vacinação no currículo escolar é, antes de tudo, ancorar nosso olhar inicial para algo que é basilar ao se falar de crianças e adolescentes:
“é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (BRASIL, 1988, art. 227)”.
A Carta Magna, em seu artigo 227, deixa muito clara a importância de diversos direitos para esse público, ratificados no Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990. Afastar-se de algumas pautas no espaço escolar em nome da “neutralidade” para evitar conflitos ideológicos é algo extremamente grave quando se trata de construir uma escola responsável e comprometida com uma educação para a vida em coletividade.
Obviamente, você, profissional da Educação, não está buscando aqui um material repleto de leis e fundamentos jurídicos, e é compreensível que não nos aprofundaremos nesse aspecto. No entanto, os últimos anos têm destacado a importância de relembrar aspectos legais devido a uma série de movimentos ascendentes na sociedade que têm colocado o tema da vacinação como uma “possível escolha” para algumas famílias e espaços escolares.
Muitas crianças, adolescentes e adultos carregam grande medo quando se fala em vacinação. O medo, multifacetado, vai desde a resistência à dor, quando nos referimos às vacinas injetáveis, até o desconforto no momento da vacinação e a dor muscular no dia seguinte. Outros aspectos envolvem o questionamento da eficácia e segurança dos imunizantes. Isso, sem falar nas filas para a vacinação, na dificuldade para conseguir imunizantes específicos e até mesmo no sabor “amargo” das vacinas administradas via oral, especialmente em crianças.[NL1]
São diversos pontos que necessitam ser abordados com cautela na escola, e integrar a vacinação ao currículo escolar é fundamental quando se almeja um projeto pedagógico responsável, que promova a educação para a saúde, a cidadania, a diversidade e a cultura de paz.
Vamos ampliar nosso olhar sobre a vacinação no currículo escolar?
Muitas escolas deixam o assunto de vacinação engessado dentro das aulas de Ciências e Biologia, como se esse tema fosse algo específico de algum campo do saber. Claro que essa tendência está relacionada às próprias orientações curriculares em nível nacional e à forma com que os livros didáticos são construídos nas coleções didáticas.
É fundamental extrapolar essa limitação e pensar que a vacinação está relacionada a aspectos sociais e que muita história para ser trazida à cena. É crucial pensar em debates que envolvam a articulação das áreas de Ciências da Natureza, Matemática, Ciências Humanas e Linguagens.
Sociedade, cultura, estratificação social, instituições sociais, identidade individual, papéis sociais e influências da família, escola e mídia – todos esses aspectos precisam ser considerados para enriquecer o debate. Não podemos limitar esse assunto apenas aos aspectos técnicos, como a fabricação das vacinas, os processos para garantir sua eficácia, doenças prevenidas e calendário vacinal. A biotecnologia, por si só, não será capaz de abordar plenamente essa discussão. É fundamental aprofundar nas diversas camadas e ampliar o olhar.
De onde veio o Zé Gotinha?
Será que a sua comunidade escolar sabe sobre a história do Zé Gotinha, personagem fundamental que colaborou com a implantação das campanhas de vacinação contra a poliomielite? Só esse tema já daria um robusto projeto interdisciplinar para se trabalhar a história das vacinas e como a vacinação desempenha um papel crucial na população.
A geração atual não conhece a história da poliomielite, uma vez que o Brasil alcançou o status de erradicação da doença em 1994, quando a última ocorrência de transmissão dentro do país foi registrada. É importante contar essa história, a fim de salientar a força com que as campanhas de vacinação foram conduzidas para que o país pudesse erradicar a doença. Além disso, é fundamental debater sobre a manutenção das altas taxas de cobertura vacinal contra a poliomielite para prevenir qualquer possível reintrodução do vírus.
Com o objetivo de desenvolver um símbolo que fosse facilmente reconhecido e que ajudasse a promover a conscientização sobre a importância da vacinação, Darlan Rosa, criador do personagem Zé Gotinha, iniciou seu processo criativo fazendo uma série de desenhos em giz crayon. O primeiro desenho representa uma sequência de imagens de uma menina caminhando sobre os anos que levariam à erradicação da pólio. Posteriormente, a criança foi substituída por um personagem em formato de gota, representando a versão oral da vacina que colaborou para a erradicação da Poliomielite. O personagem ficou conhecido nacionalmente e é, até hoje, um símbolo das campanhas de vacinação promovidas pelo Ministério da Saúde. |
Alguns vídeos sobre a história do Zé Gotinha podem ser acessados em:
Que tal promover debates ampliados?
Debater sobre os movimentos antivacina e observar como esses grupos vêm crescendo ao redor do mundo é superinteressante e potente no campo pedagógico. Debruçar-se sobre os argumentos apresentados por esses grupos e refletir a respeito deles é oportunizar ao aluno pensar de forma crítico-reflexiva. Uma proposta é promover debates baseados na estratégia de “Júri-simulado”, estimulando habilidades do ensino por argumentação, que vão desde a promoção do pensamento crítico à comunicação eficaz, à resolução de problemas, à construção de autonomia e à responsabilidade.
Outro aspecto interessante no trabalho da integração de vacinação ao currículo escolar é lançar luz, com a colaboração dos profissionais do campo das linguagens, sobre a maquinaria de produção de notícias falsas, as formas de comunicação que contribuem para a descredibilidade da ciência e a construção de “roteiros midiáticos” que estimulam a desinformação e geram conflitos sociais.
O Brasil possui várias instituições que trabalham na pesquisa e produção de vacinas, nos mais diversos níveis. Que tal estimular o estudo sobre essas instituições? Podemos estimular pesquisas sobre o Instituto Butantan, a Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), os diversos Centros da FIOCRUZ distribuídos em alguns Estados, bem como Universidades espalhadas pelo país. Muita pesquisa é feita nesses espaços, com material disponível nos websites e artigos publicados por pesquisadores e pesquisadoras.
É necessário trabalhar com o alunado a força da pesquisa nacional, as formas de fomento e como podemos fazer escolhas de governantes e legisladores que incentivam a pesquisa. Convidar estudantes a pesquisar e produzir material de divulgação é convidá-lo/a a assumir um papel ativo em seu próprio processo de aprendizagem, desenvolvendo autonomia e responsabilidade pelo trabalho.
Material audiovisual, vídeos curtos para redes sociais, podcasts e entrevistas com especialistas são alguns exemplos possíveis para a sistematização da pesquisa e a socialização com a comunidade escolar. Além disso, a pesquisa e a criação de uma linha do tempo virtual sobre os tipos de vacinas, suas tecnologias e usos constituem uma estratégia interessante. Existem vários sites gratuitos que podem ser utilizados para essas construções.
Trabalhar dessa forma se alinha à Base Nacional Comum Curricular (BNCC) do Ensino Fundamental, especialmente no que se refere à habilidade EF07CI10: “Argumentar sobre a importância da vacinação para a saúde pública, com base em informações sobre a maneira como a vacina atua no organismo e o papel histórico da vacinação para a manutenção da saúde individual e coletiva e para a erradicação de doenças (BRASIL, 2018, p. 347)”.
Da mesma forma, no Ensino Médio, a proposta se alinha à habilidade EM13CNT310, de “Investigar e analisar os efeitos de programas de infraestrutura e demais serviços básicos (saneamento, energia elétrica, transporte, telecomunicações, cobertura vacinal, atendimento primário à saúde e produção de alimentos, entre outros) e identificar necessidades locais e/ou regionais em relação a esses serviços, a fim de promover ações que contribuam para a melhoria na qualidade de vida e nas condições de saúde da população (BRASIL, 2018, p. 560 )”.
Outra forma muito interessante de discutir a vacinação com a comunidade escolar é trabalhar a importância da imunização de povos indígenas, população encarcerada, pessoas em situação de rua, dentre outros. É debater a vacinação como direito.
Integração escola-família-especialistas
A escola deve, sempre que possível, atuar de forma a convidar a família para integrar-se e participar do processo de aprendizagem juntamente com os/as estudantes. Que tal promover ciclos de debate com profissionais da saúde, cientistas, juristas e assistentes sociais, falando sobre a importância da vacinação? Essas pessoas, a partir do seu lugar de fala e de suas vivências na atuação profissional, podem, sobremaneira, enriquecer o espaço escolar.
Esse momento pode ser muito rico se cada familiar e seu respectivo estudante trouxer sua própria caderneta de vacinação para a escola e, com a ajuda de profissionais capacitados, observar o material e pensar sobre ele de forma cuidadosa. O trabalho com a caderneta em sala de aula também é um caminho possível, porém a atenção e o planejamento devem ser redobrados. Como a decisão de vacinar nessas idades está muito relacionada à organização e ao movimento da família, alguns estudantes podem ter sido privados de certos imunizantes ou doses de reforço. Isso geraria um ambiente hostil e contraproducente dentro de sala de aula. A comparação das cadernetas entre os/as estudantes pode gerar conflitos e violências diversas. É preciso ter muita atenção e cuidado com esse tipo de abordagem. Por isso, a ideia de integrar um trabalho com a família, estudantes e especialistas pode ser um caminho mais produtivo.
Conclusão
A história da Saúde Pública nos revela os diversos benefícios da vacinação ao longo de décadas, e é importante permanecermos firmes na direção de promover, na escola, a sensibilização sobre a vacinação de forma ampla e aprofundada. Isso envolve integrar a comunidade escolar, engajando estudantes, docentes, equipe técnica, terceirizados e, especialmente, familiares. O estudo, a informação e o debate coletivo serão sempre o caminho para fortalecermos o espaço escolar com um projeto de escola que educa para a cidadania.
Referências
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.
BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 1990.
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, 2018.
BRASIL. Ministério da Saúde. Programa Nacional de Imunização. Acessado em 21/04/2024.Disponível em:
BRASIL. Ministério da Saúde. Calendário de Vacinação. Acessado em 21/04/2024. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/vacinacao/calendario PORTAL BUTANTAN. Instituto Butantan. Conheça a história do Zé Gotinha: de ícone da vacinação a celebridade nacional. Acessado em 21/04/2024. Disponível em: https://butantan.gov.br/noticias/conheca-a-historia-do-ze-gotinha-de-icone-da-vacinacao-a-celebridade-nacional#:~:text=Personagem%20levou%20o%20p%C3%BAblico%20infantil,chave%20na%20erradica%C3%A7%C3%A3o%20da%20poliomielite&text=Caminhando.,%C3%A0%20popula%C3%A7%C3%A3o%20pela%20primeira%20vez.
Minibio do autor
Danilo de Carvalho Leandro é graduado em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Mato Grosso, com mestrado e doutorado pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). É professor da UFPE desde 2016, atuando no Colégio de Aplicação da UFPE e na Pós-graduação em Ensino de Biologia do Centro Acadêmico de Vitória de Santo Antão/UFPE. Acumula experiência na Gestão Acadêmica, Escolar e atua como docente e pesquisador na área de metodologias e estratégias didáticas para o ensino de Ciências e Biologia. Em paralelo ao campo da educação, realiza pesquisas em Entomologia e Saúde Pública, estudando mosquitos de importância médica e arboviroses. Atualmente realiza pós-doutorado na Texas A&M University, College Station, Estados Unidos.