Políticas Afirmativas: por quê e para quem?
Justiça. Palavra carregada de uma subjetividade provavelmente contraditória ao seu próprio conceito. Afinal, é ela quem rege os princípios legais que, por sua vez, norteiam as normas de convivência em sociedade. O entendimento do que é justo, entretanto, nem sempre converge com o que se conceitua como legalidade. Prova disso é o grande contingente de opiniões diversas e, muitas vezes, conflitantes quando se trata de Políticas Afirmativas. Mesmo quando a ignorância a respeito das suas motivações é inexistente e/ou quando há o entendimento sobre os direitos do público a qual se destinam, ainda assim, há questionamentos a respeito das suas aplicações. Antes de mencioná-las, há, portanto, a necessidade de explicações a respeito da sua conceituação.
O que são políticas/ações afirmativas
A literatura especializada conceitua políticas/ações afirmativas como todas as ações que objetivam uma forma de oferecer oportunidades e recursos para indivíduos/parcelas da sociedade em situação de desigualdade com seus semelhantes, por razões das mais diversas, sejam históricas ou culturais. Indivíduos descriminados, vítimas de preconceito/retaliação pela etnia, gênero, cor, região de origem, deficiência, condição socioeconômica ou recorte étnico-racial. Na prática, essas ações podem consistir em condições especiais para o acesso ao estudo, ao mercado de trabalho ou à celebração de contratos públicos. Na educação há, por exemplo, reserva de vagas para grupos específicos (cotas) ou o acréscimo de pontos nas notas (bonificações).
Panorama da desigualdade nacional
Brasil: historicamente, um país marcado pela desigualdade. Uma federação que já se formou sob o julgo da subordinação dos povos originários e, posteriormente, de outros trazidos de além-mar. A convencionalmente dita abolição da escravatura, oficializada no dia 13 de maio de 1888, não passou de uma mera convenção. Afinal, os africanos e seus descendentes escravizados não viram mudanças em suas condições com o Decreto, exceto o fato de estarem desalojados. A busca por subsistência, moradia e trabalho não apenas encontrou inúmeros percalços como gerou várias gerações seguintes marcadas por obstáculos semelhantes.
Desigualdade em todas as esferas
Desde então (leia-se, desde o princípio), essa desigualdade perpetua-se em várias instâncias. De acordo com Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, referente ao primeiro trimestre de 2024 e divulgada no dia 17 de maio deste ano, na região Nordeste, por exemplo, foram observadas as maiores medidas de subutilização da força de trabalho. Na Região Sul, as menores. Lembrando que o Nordeste foi a primeira região ocupada pelos portugueses e para onde veio um grande contingente de povos escravizados. Ainda segundo o estudo, as unidades da federação que apresentaram as maiores taxas de desocupação foram Bahia (14,0%), Pernambuco (12,4%) e Amapá (10,9%). As menores em Rondônia e Mato Grosso (3,7%) e Santa Catarina (3,8%).
Desigualdade racial na educação
Em 10 de junho deste ano, o Ministério da Educação (MEC) divulgou pesquisa sobre desigualdade racial na educação. Realizado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), o estudo “O círculo vicioso da desigualdade racial na educação do Brasil: quando a diversidade racial e étnica se transforma em desigualdade” investigou aspectos da diversidade racial no mercado de trabalho docente. Considerando cor/raça de estudantes e professores, incluindo os territórios diferenciados, analisou quais as características da oferta educacional desde a Educação Básica e o Ensino Superior até o mercado de trabalho docente. A conclusão? Infelizmente, nenhuma surpresa. A pesquisa concluiu que a oferta da educação pública não é a mesma para pretos, pardos e indígenas. Em termos gerais, por exemplo, dos 2,3 milhões de discentes sem infraestrutura mínima, 86% são eles.
No mercado de trabalho
De acordo com outra pesquisa, desta vez a Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), realizada com base nos dados do 2º trimestre de 2023, o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), concluiu que o mercado de trabalho ainda é espaço de reprodução da desigualdade racial. Apesar de representar 56,1% da população em idade “produtiva”, por exemplo, os negros correspondem a mais da metade dos desocupados (65,1%). A taxa de desocupação destas pessoas é de 9,5%, sendo 3,2 pontos percentuais acima da taxa dos não negros. No caso das mulheres negras, que acumulam as desigualdades de raça e de gênero, a taxa foi de 11,7%.
Histórico das Políticas Afirmativas no Brasil
No Brasil, muitas das medidas referentes às políticas afirmativas são consideradas constitucionais. Algumas são regulamentadas por leis federais e estaduais, enquanto outras dependem de decisões autônomas das diferentes instituições. Segue, abaixo, um breve histórico da criação destes mecanismos:
1. O Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288/2010) – determina ações para garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica.
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2. A Lei de Cotas nas Universidades e Institutos Federais (Lei nº 12.711/2012) – reserva vagas para estudantes de escolas públicas, baixa renda e autodeclarados pretos, pardos, indígenas, quilombolas e com deficiência em instituições federais de ensino superior e técnico de nível médio.
3. A Lei de Cotas nos Concursos Públicos (Lei nº 12.990/2014) – reserva 20% de vagas para pretos e pardos em concursos federais.
4. Decreto nº 9.427, de 28 de junho de 2018 – reserva vagas para pretos e pardos nas seleções para estágio no âmbito da administração pública federal direta e indireta;
5. Decreto nº 10.932, de 10 de janeiro de 2022 – promulgou a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, firmado pela República Federativa do Brasil, na Guatemala, em 5 de junho de 2013;
6. A Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003 – prevê a obrigatoriedade de inclusão no currículo oficial da Rede de Ensino da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”.
7. Decreto nº 11.443, de 21 de março de 2023 – dispõe sobre o preenchimento, por pessoas negras, de percentual mínimo de cargos em comissão e funções de confiança no âmbito da Administração Pública Federal;
8. Decreto nº 11.442, de 21 de março de 2023 – instituiu o Grupo de Trabalho Interministerial para a elaboração do Programa Federal de Ações Afirmativas.
Programa Federal de Ações Afirmativas (PFAA)
Fato é que, após um período de franco desestímulo à criação de novas ações de políticas afirmativas ou mesmo retrocesso em relação a políticas afirmativas já existentes, de 2018 a 2022, o ano de 2023 chegou com uma mudança nesse cenário: a criação do Programa Federal de Ações Afirmativas (PFAA), construído por meio de um Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) – instituído pelo Decreto nº 11.442, de 21 de março de 2023 – e coordenado pelo Ministério da Igualdade Racial com a participação de 16 órgãos do Governo Federal.
Lançado em novembro desse ano, objetiva promover direitos e equiparação de oportunidades por meio de ações afirmativas destinadas às pessoas negras, quilombolas, indígenas, com deficiência e mulheres. Trabalha com a proposição de novas políticas públicas e/ou realização de ajustes às políticas existentes com vistas ao seu fortalecimento e aperfeiçoamento. Seus principais objetivos são:
- promover igualdade de oportunidades por meio de ações afirmativas;
- promover a inclusão por meio de políticas de reparação, valorização e acessibilidade;
- ampliar a conscientização sobre desigualdades de raça, etnia, deficiência e gênero;
- valorizar a contribuição de pessoas negras, quilombolas, com deficiência, indígenas e mulheres na formação da sociedade brasileira.
Transversalidade e Intersetorialidade do PFAA
Passados mais de 20 anos do início da implementação de ações afirmativas no Brasil, o Programa Federal de Ações Afirmativas chegou mais condizente com a realidade atual do país, tendo em vista questões de transversalidade e intersetorialidade. A primeira envolve a incorporação de diferentes perspectivas e dimensões em todas as fases das políticas, considerando não apenas os aspectos específicos, mas também suas interconexões com outras áreas. A intersetorialidade, por sua vez, implica a cooperação e coordenação entre diferentes setores do governo e atores da sociedade civil para atingir objetivos comuns.
Biografia do autor
Patrícia Monteiro de Santana é jornalista formada pela Universidade Federal de Pernambuco em 2000. Possui atuações em veículos como TV Globo, Revista Veja e Diario de Pernambuco, além de agências de comunicação empresarial, cultural e política. É, ainda, assistente da Assessoria de Artes Circenses da Secretaria de Cultura do Governo do Estado de Pernambuco desde o ano de 2021, atuando diretamente na elaboração de políticas públicas para o segmento.